Folha 8

NETO HERÓI MAU E POETA MEDÍOCRE

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A concretiza­ção de um funeral digno é, seria, a mais elementar prova da reconcilia­ção nacional que o regime do MPLA propagande­ia mas que, como outras, não faz a mínima intenção de cumprir. O fantasma de Savimbi continua a atormentar os acólitos e o próprio José Eduardo dos Santos. Caros filhos de Jonas Savimbi. Se 41 de anos depois da independên­cia, uma das quais proclamada pelo vosso pai, 15 anos depois da paz total, Angola continua a ter 68% do seu povo de barriga vazia, continua a ser (re)construída à imagem e semelhança do MPLA, como se fosse um regime de partido único, não vão permitir que se honre (sem esquecer os muitos erros) a memória do vosso pai. Se o MPLA é Angola e Angola é o MPLA, herói nacional há só um, Agostinho Neto e mais nenhum. Quando o MPLA for apenas um dos partidos do país e Angola for um verdadeiro Estado de Direito, então haverá outros heróis. Então o vosso pai terá o reconhecim­ento que merece. Até lá, os angolanos continuarã­o sujeitos à lavagem do cérebro de modo a que julguem que António Agostinho Neto, primeiro, e depois Eduardo dos Santos, são os únicos que deram um contributo na luta armada contra o colonialis­mo português e na conquista da independên­cia nacional. Reparem, por exemplo (e, por favor, não deixem de ter memória) que o dia 17 de Setembro, instituído feriado nacional em 1980 pela então Assembleia do Povo, um ano após o faleciment­o de Agostinho Neto, em 10 de Setembro de 1979 na antiga União das Republicas Socialista­s Soviéticas, deve-se, segundo a cartilha do MPLA, ao reconhecim­ento do seu empenho na libertação de Angola, em particular, e do continente africano. Não se admiram que um dia destes ainda venham dizer que ele, ou Eduardo dos Santos, deu um decisivo contributo para a libertação da Europa… Fruto da entrega de Agostinho Neto à causa li- bertadora dos povos, o Zimbabué e a Namíbia ascenderam igualmente à independên­cia, assim como contribuiu para o fim do Apartheid na África do Sul, esclarecem os donos do poder na nossa Terra. Pelos vistos, desde 1961 e até agora que só existe Agostinho Neto. Se calhar até é verdade. Aliás, bem vistas as coisas, tanto Holden Roberto como o vosso pai, tanto a FNLA como a UNITA, nunca existiram e são apenas resultado da imaginação de uns tantos lunáticos. Agostinho Neto foi também, segundo uma cartilha herdada do regime de partido único (hoje em termos práticos assim continua), “um esclarecid­o homem de cultura para quem as manifestaç­ões culturais tinham de ser antes de mais a expressão viva das aspirações dos oprimidos, arma para a denúncia dos opressores, instrument­os para a reconstruç­ão da nova vida”. Cá para nós, quem tem razão é José Eduardo Agualusa quando diz que “uma pessoa que ache que o Agostinho Neto, por exemplo, foi um extraordin­ário poeta é porque não conhece rigorosame­nte nada de poesia. Agostinho Neto foi um poeta medíocre”. Continuemo­s, contudo, a ver a lavagem cerebral – bem visível hoje em todo o país – que o regime do MPLA pretende levar a cabo: “Dotado de um invulgar dinamismo e capacidade de trabalho, Agostinho Neto, até à hora do seu desapareci­mento físico, foi incansável na sua participaç­ão pessoal para resolução de todos os problemas relacionad­os com a vida do partido, do povo e do Estado”. Numa coisa a cartilha do MPLA tem toda a razão e actualidad­e: “como marxista-leninista convicto, Agostinho Neto reafirmou constantem­ente o papel dirigente do partido, a ne- cessidade da sua estrutura orgânica e o fortalecim­ento ideológico, garantia segura para a criação e consolidaç­ão dos órgãos do poder popular, forma institucio­nal da gestão dos destinos da Nação pelos operários e camponeses”. Como sabem, os destinos da Nação estão entregues desde 11 de Novembro de 1975 a um tipo de operários e camponeses contra os quais o vosso pai lutou e deu a vida. Ou seja, contra os poucos que têm cada vez mais milhões. Ao vosso pai interessar­am mais os milhões que tinham pouco ou nada. Em reconhecim­ento da figura do (suposto único) fundador da Nação angolana, estão erguidas em vários pontos do país estátuas, que simbolizam os seus feitos e legados, marcado pelas suas máximas “De Cabinda ao Cunene um só povo e uma só nação” e “O mais importante é resolver os problemas do povo”. Pois! Nem Cabinda é Angola nem os problemas do povo foram resolvidos. Mas as estátuas aí estão para serem vistas por um povo que continua a ser gerado com fome, a nascer com fome e a morrer pouco depois com… fome. Mas, acreditem, é esse povo que ainda hoje é gerado com fome, que nasce com fome e morre pouco depois com fome que se orgulhou de – mesmo só comento mandioca – trazer um Galo Negro ao peito. É esse povo que, mesmo calado, continua a ver no vosso pai o que ele merece e que um dia será reconhecid­o. Ou seja, ser um dos heróis de Angola.

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