MILITARES E O ESPAÇO ANGOLANO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII (PARTE II)
Nas fontes produzidas por súditos portugueses no século XVIII é usual a utilização dos termos “reino de Angola e suas conquistas” para fazer referência aos territórios sob o domínio da Coroa portuguesa o que evidencia a necessidade de problematizar a iden
Em 1648, após a expulsão dos holandeses, Angola passou a ser governada por um capitão-mor, que teria que ser indicado pelo governador de Angola e aprovado pelo Conselho Ultramarino em Lisboa. Somente em 1779, a Coroa portuguesa resolveu retomar ao sistema de governador em Benguela com a nomeação de Antônio José Pimentel de Castro e Mesquita. Mesmo subordinado a Angola, o governador tinha prerrogativas de administrar fortalezas que estavam em pontos chaves para a realização do comércio. Cândido afirma que o governador de Benguela fiscalizava a função dos capitães-mores que administravam os presídios no sertão. Como em Luanda, em Benguela, os territórios do interior não estavam sob o controle dos “portugueses” e sim dos sobados avassalados ou não. Desse modo, devemos sempre considerar a situação de certa autonomia em relação a Angola e de suas especificidades locais. Não havia uma fronteira geográfica definida, pelo contrário, estas eram flexíveis, muito influenciadas pela interação entre diferentes sociedades e culturas, com a recriação e sobreposição de identidades. Eram as condições políticas locais que definiam as fronteiras internas e por isso os territórios políticos não tinham um contorno claro e estavam em constante mudança. As fronteiras também eram definidas pelo fluxo contínuo de pessoas que chegavam de diversas partes do Reino. A própria fronteira da escravização estava em permanente mudança. Devemos observar, também, que a expansão do comércio de escravos reorganizou o território e as áreas de influência africana e “portuguesa”, tanto na costa, quanto no interior. Mesmo com a presença da administração portuguesa, os poderes africanos continuaram a ostentar seus marcadores territoriais, e o estabelecimento de presídios e feiras em territórios avassalados possibilitou a participação dos africanos nas atividades comerciais. Ou seja, havia uma sobreposição ou mescla institucional, jurídica e jurisdicional. Ao analisar Portugal, Ana Cristina Nogueira da Silva atesta que, no século XVIII, nos territórios, não faltavam factores de confusão, diversidade institucional e incoerência administrativa, da mesma forma que a tradição e o respeito pelos poderes constituídos eram os critérios que presidiam a divisão do espaço, com a jurisdição aderindo ao território. Assim, também em Angola, o poder político português foi durante muito tempo nominal e a precariedade de sua ocupação permitiu a coexistência de vários poderes, com a existência de diversas soberanias. A autoridade portuguesa estava confinada ao litoral e em alguns presídios no interior, no entanto os diversos potentados que não eram vassalos da Coroa portuguesa, tinham a sua autoridade fora da jurisdição dos presídios. Todavia, mesmo que alguns sobas não fossem vassalos dos portugueses, reconheciam o governo da capital. Por outro lado, em locais onde os chefes não se submetiam ao avassalamento, o governo português não interferia. Em suma, apenas uma diminuta parcela do território poderia ser considerada sob jurisdição da administração portuguesa, o que definia a precariedade do domínio reinol português na África.
É importante destacar que o espaço político condiciona a vida humana em vários aspectos, sendo ele múltiplo e construído. Os espaços podem ser construídos e a realidade pode ser manipulada em função de projetos ou de práticas e interesses sociais. Para a segunda metade do século XVIII, podemos considerar que havia um projeto para a transformação do território em Angola. Supõe-se a ideia de que, com o advento do Estado Moderno de fins do século XVIII, houve a fundação de uma ordem territorial que se sobrepôs a uma ordem de natureza pessoal ou comunitária. No entanto, a realidade de Angola neste período nos mostra o contrário, pois já existiam formas de organização no território pré-estabelecidas e que não foram aniquiladas com a presença portuguesa. Territórios, aliás, que se definiam politicamente e podiam ser alterados. Ademais, como culturas e noções de es- paço se modificaram, as representações sociais do espaço podiam ser complexas e contraditórias. O que a Coroa portuguesa pretendia na segunda metade do século XVIII era uma regularidade e fidelidade nas relações entre centro e periferia. Intentava-se a unificação do espaço, com um território de uma só legislação e fiscalidade. Por isso, o investimento em três meios fundamentais para alcançar este objetivo: a produção de conhecimentos sobre o território, a construção de infraestruturas comunicacionais e o investimento de equipamento político-administrativo do território. Em tempo, nada disso alterou, necessariamente, noções africanas de exercício do poder sobre pessoas, antes que pelo domínio do espaço. Ao que parece, os poderes portugueses em Angola não raro confirmavam tal perspectiva. A toponímia em fontes portuguesas tinha como referência autoridades africanas. Exemplo clássico é a designação Angola, que deriva de ngola ou ngola a kiluanji, título dos reis do antigo reino do Ndongo. Outro exemplo é o da fortaleza de Muxima, que recebeu este nome por situar-se nas terras do soba Muxima Aquitamgombe. Ou seja, os portugueses nomeavam os territórios com base nas autoridades africanas. A construção do Reino de Angola, portanto, levou em conta poderes locais. Continua nas próximas edições
*Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro