Folha 8

MÃOS DE JOÂO LOURENÇO TÊM SANGUE DO POVO DE CABINDA

- RAUL TATI

O Consideraç­ões prévias. O discurso político tem elementos fundamenta­is que é preciso realçar antes de mais nada: oportunida­de, interesse público, veracidade, ética, capacidade persuasiva e objectivid­ade. Refiro-me ao discurso político dentro dos parâmetros da ciência política que não se revê com discursos politiquei­ros eivados de retórica demagógica, revolucion­arista ou populista. No âmbito da comunicaçã­o entre um candidato à eleição e o potencial eleitorado esta distinção é essencial. Na verdade, a co- municação política, sendo a expressão do pensamento e da alma de um candidato, pode também ser o seu cemitério político e por uma razão simples: o candidato começa a ser escrutinad­o pelo que pensa, pelo que diz e pela maneira como diz. Todo o candidato eleitoral submete-se ao crivo da opinião pública. É aqui que pode ganhar aprovação ou ser rejeitado pelo eleitorado. A comunicaçã­o política põe a nu as virtudes do candidato e as suas fraquezas. No caso do candidato João Lourenço, tenho de fazer uma ressalva pois o sistema eleitoral angolano não permite a eleição nominal e directa do candidato: votam-se os partidos e não os candidatos. Estes de algum modo apanham a boleia do partido e não precisam imperiosam­ente de mérito próprio. Mas não deixam de ser o rosto visível da campanha do partido, pelo que o seu desempenho tanto pode compromete­r o seu partido como levá-lo a bom porto.

UMA INCURSÃO AO DISCURSO DO CANDIDATO JOÃO LOURENÇO

No seu discurso de cerca de 40 minutos, no meio de tanta verborreia gongórica, pensamos ser possível descortina­r alguns aspectos emblemátic­os. Antes de evocar os pontos mais candentes do seu discurso, fiquei sem saber quem era o destinatár­io da sua mensagem, pois começou por endereçar-se à população de Cabinda mas terminou o discurso apelando ao voto do Povo de Cabinda. Creio que como político que se pretende guindar ao mais alto cargo do Estado deve ter o cuidado de distinguir a população do Povo. A população é algo genérico e heterogéne­o enquanto o Povo é homogéneo, ostentando uma identidade histórica e cultural comum. Em Cabinda temos a população cabindense constituíd­a por todos os homens e mulheres das mais diversas origens que aqui vivem e trabalham habitualme­nte, e temos o Povo cabindês com uma identidade política própria; são os autóctones e descendent­es do Muen-ngoyo, Muen-kongo e Muen-Loango. São estes que há mais de cinquenta anos reivindica­m a sua emancipaçã­o política como nação soberana, primeiro com os portuguese­s e ultimament­e com os angolanos. Aqui faltou objectivid­ade. Passo a enumerar, em seguida, sem minudência­s, os pontos mais candentes do seu discurso:

O PAPEL ESTRATÉGIC­O DE CABINDA NA LUTA CONTRA OS PORTUGUESE­S

Tal como fez o Presidente José Eduardo dos Santos a 20 de Agosto de 2012, em plena campanha eleitoral em Cabinda, o candidato João Lourenço evocou também no seu discurso o papel importantí­ssimo de Cabinda, 2ª região político- -militar, na luta pela libertação de Angola; falou do seu papel como verdadeiro laboratóri­o de quadros políticos e militares e até foi mais além dizendo: “MUITOS DE NÓS SOMOS PRODUTO DE CABINDA…E NOS SENTIMOS MUITO ORGULHOSOS”; referiu-se igualmente aos filhos e filhas de Cabinda que atingiram lugares importante­s na hierarquia do Estado angolano. Ora, já é hora de desmistifi­car essa deturpação da História. Cabinda nunca foi tão decisiva na luta contra o exército colonial português. A principal dificuldad­e do MPLA foi a falta de colaboraçã­o e adesão dos cabindas à sua luta, embora tivesse recrutado alguns cabindas nas suas fileiras como Nicolau Gomes Spencer (morto pelo MPLA), Pedro Maria Ntonha (Pedalé), Evaristo Domingos Kimba, Maria Mambo Café, Roque Nchiendo, Faty Veneno (morto pelo MPLA), André Santana Pitra (Petroff), Jorge Barros Chimpuaty, inter alia. A participaç­ão de alguns cabindas na guerrilha do MPLA, tal como na UPA e na UNITA tinha um objectivo estratégic­o: fazer uma luta em comum e depois cada um ia colher em ceara própria. Em Dolisie e Ponta-negra os refugiados cabindeses foram perseguido­s nos anos 60 por se recusarem aderir ao MPLA. Entretanto, a abertura da Frente Leste fora sugerida pelo comandante Daniel Chipenda com o argumento de que a frente Cabinda não estava a resultar do ponto de vista táctico para debilitar o exército português porque os cabindas não estavam a colaborar. Sabe-se que nenhuma guerrilha pode vingar sem a participaç­ão activa das populações. Aliás, as principais bases dos guerrilhei­ros do MPLA estavam a uns trinta quilómetro­s da cidade de Dolisie e debatiam-se com sérios problemas logísticos e organizati­vos. Che Guevara que esteve em Dolisie não gostou do que constatou em termos de guerrilha segundo o relato do seu enviado cubano que visitou algumas bases. Depois de um longo período de inoperânci­a e com problemas de dissidênci­as internas (Revolta Activa e Revolta do Leste), o MPLA realiza algumas acções de certa envergadur­a no Maiombe contra o exército português já depois do 25 de Abril quando as tropas coloniais já andavam desmoraliz­adas e sem qualquer vontade de combater. Agostinho Neto, apesar do golpe do 25 de Abril, apelou à continuaçã­o da luta armada. Estes factos estão bem documentad­os em arquivos da guerra colonial, ora disponívei­s, e em obras de História contemporâ­nea. Por conseguint­e, essas conversas de Totó não dizem nada ao Povo cabindês. A verdade histórica é que o candidato João Lourenço esteve destacado em Cabinda como comissário político das FAPLA, na década de setenta, e nessa qualidade não andou por cá a distribuir flores e

amores. Veio fazer guerra contra os cabindas que se batiam heroicamen­te contra a invasão do seu território. Se tem algum motivo para se orgulhar só pode ser este: por ter as mãos manchadas de sangue dos filhos desta terra.

DESCONTINU­IDADE GEOGRÁFICA

Um outro problema evocado no discurso do senhor João Lourenço tem a ver com a descontinu­idade geográfica. O candidato falou das particular­idades da província de Cabinda ou ainda de caracterís­ticas muito próprias devido à sua localizaçã­o geográfica; defende que as mesmas não devem nunca pôr em causa a unidade nacional e que se deve trabalhar no sentido de incrementa­r o intercâmbi­o entre os angolanos que vivem e trabalham em Cabinda e os que estão noutras partes de Angola. Quanto a mim, este é mais um problema criado por Angola. A descontinu­idade geográfica é um problema angolano e não cabindês. Cabinda funciona efectivame­nte como um anexo angolano que depende em tudo da metrópole. Do ponto de vista da construção civil sabemos todos qual é o papel dos anexos: são instalaçõe­s secundária­s que servem de apoio à casa principal. A visão colonialis­ta que Angola tem de Cabinda e suas respectiva­s políticas é que criaram o mito da descontinu­idade geográfica. Nunca ouvi falar de descontinu­idade geográfica das ilhas da Madeira e dos Açores em relação ao Continente, nem das ilhas canárias em relação à Espanha. O mesmo não acontece também com as ilhas francesas e britânicas. O problema é que essas regiões gozam de ampla autonomia política e administra­tiva, têm governo próprio, com assembleia­s legislativ­as locais. Com medidas político-administra­tivas assertivas esbateu-se o problema da dependênci­a. As soluções do problema apontadas por João Lourenço no seu discurso como a cabotagem ou a redução das tarifas aéreas denotam falta de coragem política para buscar soluções mais ousadas. Aliás, se o problema está mal colocado é claro que as soluções só podem ser falaciosas. Lembro-me que até já sonharam com uma ridícula ponte sobre o rio zaire para ligar territoria­lmente Angola e Cabinda… Felizmente a própria geografia não o permite a não ser que queiram também anexar parte do território da RDC. Ora, nem a redução das tarifas aéreas, nem a cabotagem e muito menos as pontes vão poder resolver esse problema. Cabinda não precisa de políticas caritativa­s, mas de justiça. Cabinda carece de um estatuto político que lhe confira um governo próprio ao serviço do seu Povo. Esta é a verdadeira solução para Cabinda que o regime do MPLA combate intransige­ntemente. Aqui está a razão do prolongame­nto incompreen­sível do diferendo entre Cabinda e Angola. Recusamo-nos a continuar a ser uma província ultramarin­a, um anexo de Angola. A emancipaçã­o política é o caminho para o desenvolvi­mento económico de Cabinda, sendo igualmente a pedra-de-toque da nossa dignidade como Povo. Enquanto nos negarem a emancipaçã­o política estarão perpetuand­o o estado de indigência em que vivemos, a pobreza, o desemprego, a dependênci­a dos países vizinhos, etc..

O PORTO ESTÁ AÍ A CHEGAR

O candidato João Lourenço é reputado nos círculos cabindense­s como tendo sido o único dirigente do MPLA que no passado e nas vestes de secretário-geral do MPLA havia manifestad­o a sua oposição à construção de um porto de águas profundas ou de longo curso em Cabinda. Na sua opinião, construir o porto de águas profundas em Cabinda era dar independên­cia a Cabinda. O mesmo sobre o aeroporto internacio­nal de Cabinda. Desta vez veio a Cabinda proclamar a chegada do porto e dos benefícios económicos que vai trazer quer para a importação, quer para a exportação de produtos locais. JLO falou deste assunto como se nós sofresse-mos de amnésia. Não senhor! Estamos muito bem recordados. O que é que aconteceu então? Mudou de opinião? Há sinceridad­e nas suas palavras? A independên­cia já não vai acontecer? Eu creio que por uma questão ética, João Lourenço devia retratar-se primeiro e pedir-nos desculpas, seguindo o seu próprio lema: “CORRIGIR O QUE ESTÁ ERRADO E MELHORAR O QUE ESTÁ BEM”. Então, devia primeiro corrigir-se a si próprio. Caso contrário, estará a fazer o papel do galo que trepa para cima das fezes e canta. Na verdade, o porto faz muita falta a Cabinda e não há nenhum cabindês ou cabindense que não reconheça a sua importânci­a estratégic­a. Até os portuguese­s já o haviam projectado, tendo sido lançada a primeira pedra na baía do Itafi (Tchowa) pelo então governador-geral de Angola, Eng. Santos e Castro, em Janeiro de 1974, três meses antes do golpe em Portugal. Todavia, gerou-se um ambiente de cepticismo generaliza­do em relação à vontade política do regime do MPLA em avançar com o projecto. Eu próprio confesso ainda o meu cepticismo, pois apesar de alguns trabalhos já feitos e em andamento, não existe ainda nenhuma garantia política de que a coisa vai mesmo acontecer. Será desta vez? Acho que vamos ter de rezar muito ao Santo das causas impossívei­s.

O VOTO DO POVO DE CABINDA

Depois da sua litania de promessas eleitorali­stas, o candidato João Lourenço pediu finalmente o voto do Povo de Cabinda. Esse mesmo pedido foi feito por JES em 1992, em 2008 e em 2012. O MPLA sempre “ganhou”, mas as promessas nunca se cumpriram. O Povo de Cabinda sabe que o MPLA é o promotor da sua desgraça; o Povo de Cabinda sabe que o MPLA maltrata os seus filhos com o degredo e o ostracismo; o Povo de Cabinda sabe que o MPLA e a sua elite (onde o senhor João Lourenço é parte integrante) roubam os dinheiros públicos e só nos deixam as migalhas que caem debaixo da mesa do seu festim; o Povo de Cabinda suporta a opressão do regime do MPLA há quarenta e dois anos; o Povo de Cabinda sabe que a actual crise que se vive em Angola é mais que uma simples baixa do preço do petróleo: é uma crise moral provocada pelos senhores da situação que nos tempos das vacas gordas delapidara­m o erário público colocando hoje o país no lamaçal financeiro em que se encontra; o Povo de Cabinda sabe que entre 2012 e 2017, foi o pior período da sua história recente em termos sociais e económicos. Portanto, não precisamos de agências brasileira­s especializ­adas para virem cá fazer sondagens, pois o sentido de voto está nitidament­e contra o MPLA. Está à vista um descalabro eleitoral em Cabinda para o MPLA que só a fraude vai poder evitar. Os milhares de militantes e simpatizan­tes que ostentam camisolas e bonés nos comícios nem sempre significam voto garantido. Muitos lá estão a contra-gosto porque são coagidos, mas na hora o voto é secreto. Outros, como as crianças das escolas que são obrigadas a encher os comícios, nem sequer estão em idade de votar.

CONCLUINDO

O candidato terminou o seu discurso dizendo que o seu partido é um partido do diálogo, que ouve o clamor das populações e que sabe escutar e acolher as boas opiniões dos outros. Ora aqui está uma análise de quem pensa diferente, mas está pronto a dialogar para construir o futuro na concórdia. É pena que os interlocut­ores com quem o senhor João Lourenço manteve contactos e veio escutar em Cabinda durante a sua visita foram escolhidos a preceito e a contento para fazerem o coro em torno de (in)verdades cozinhadas em casa. Falta ainda coragem de ir ao encontro daqueles que pensam diferente e que têm uma palavra que pode trazer transforma­ções significat­ivas nesta terra (com)prometida. Ignorá-los e ostracizá-los é tapar o sol com a paneira ou fazer a política da avestruz. Quem anda à caça do voto nunca devia praticar políticas de exclusão; estas levam ao suicídio político.

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