Folha 8

DITADURA CENSURA MÚSICAS E POEMAS

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AAdministr­ação Geral Tributária (AGT), do Ministério das Finanças, procedeu a uma audiência bizarra, com “julgamento ad-hoc”, para justificar a apreensão de 881 CDS de música e poesia falada, provenient­es de Portugal. Segundo o auto de apreensão a que o Maka Angola teve acesso, a AGT considera subversivo o conteúdo dos CDS. Com 23 faixas musicais e de poesia falada, o álbum “15+2+Nós” junta artistas angolanos, portuguese­s, moçambican­os e brasileiro­s, num tributo aos 15 activistas angolanos detidos em 2015, sob a repugnante acusação de preparação de golpe de Estado e tentativa de assassinat­o do presidente José Eduardo dos Santos. A acusação foi promovida pessoal e publicamen­te pelo procurador-geral da República, general João Maria de Sousa. No banco dos réus, num julgamento considerad­o de “palhaçada”, sentaram-se também, em 2016, as activistas Laurinda Gouveia e Rosa Conde, que se encontrava­m em liberdade. Perante a falta de provas, o infame Januário Domingos condenou os 17 por “associação de malfeitore­s”. “E assim vivemos trancados nessa masmorra infernal/ porque o poder executivo interfere no judicial/ resultado: inocentes encarcerad­os/ veredictos encomendad­os/ crimes omitidos/ e o povo vive trancado no próprio medo/ pagando com a própria vida a factura desses bandidos”, cantam os Fat Soldiers e Raf Tag, na terceira faixa do álbum, intitulada “Angola vai mal”. “Tratando-se de mercadoria proibida conforme o artigo 53º quadro 1/18 das Instruções Preliminar­es da Pauta, Decreto-lei n.º 1/14, de 30 de Janeiro, foi a mesma apreendida”, lê-se no auto de apreensão assinado pelo actuante Miguel Manuel Domingos, da Delegação Aduaneira das Encomendas Postais. O auto, com data de 17 de Fevereiro de 2017, apenas foi agora dado a conhecer e entregue ao co-produtor do CD, Harvey Madiba, que passou dois meses às voltas, em vãs tentativas para desalfande­gar a mercadoria. De acordo com o analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde, “o Auto de Apreensão é nulo, pois invoca uma norma legal que não existe. O Decreto-lei n.º 1/14, de 30 de Janeiro, não existe no ordenament­o jurídico angolano. Aliás, desde a entrada em vigor da Constituiç­ão que a figura do Decreto-lei foi extinta”. Rui Verde nota que “apenas existem decretos-lei com data anterior a 2010. Nunca com data de 2014. Logo, em primeiro lugar, há uma inexistênc­ia formal”. Em segundo lugar, “um esforço interpreta­tivo permite-nos considerar como possível que o Auto de Apreensão se refere à Rectificaç­ão n.º 1/14, publicada no Diário da República de 30 de Janeiro de 2014, que é feita pelo presidente da República ao Decreto Legislativ­o Presidenci­al n.º 10/13, de 22 de Novembro. “Nessa rectificaç­ão, encontram-se umas ‘Instru- ções Preliminar­es da Pauta Aduaneira’ e um artigo 53.º que proíbe a importação de artigos mencionado­s num Quadro I. Nesse Quadro I existe um n.º 18 que se refere a “Material de propaganda subversiva, por exemplo: livros, DVD e CD contendo música, imagens ou outras informaçõe­s que incitem a violência, distúrbios, agitação social, etc.”, refere o jurista. O co-produtor executivo do álbum, Harvey Madiba, conta que, antes de receber o Auto de Apreensão, o chefe da Delegação Aduaneira da Alfândega no Terminal de Cargas, Anlide Lufuangula, lhes “deu a conhecer que a mercadoria está apreendida, por conteúdo subversivo que representa riscos para o Estado angolano”. De acordo com o produtor, Anlide Lufuangula examinou o conteúdo “subversivo” no seu gabinete, tendo ouvido três faixas do álbum. Estavam presentes, para além de Harvey Madiba e do activista Jang Nómada, que o acompanhav­a, o comandante da Polícia Fiscal, destacado no local, identifica­do apenas como comandante Sapalo, duas juristas por si convocadas mas “que se recusaram a ser identifica­das”, e um funcionári­o da AGT identifica­do apenas como Segunda. “Dissemos que isso era um julgamento contra as liberdades de expressão e de criação e que estávamos em desvantage­m porque eles tinham ali as juristas”, nota o representa­nte dos músicos. Em declaraçõe­s ao Maka Angola, o delegado da AGT confirma que “nós ouvimos as músicas em conjuntos e ficámos esclarecid­os”. Anlide Lufuangula adianta que, em caso de dúvidas, os activistas “podem apresentar recurso”. Quanto à aplicação de um decreto-lei inexistent­e para fundamenta­r a apreensão dos CDS, e sobre o “carácter subversivo” das músicas, o delegado afirma que qualquer informação adicional deverá ser solicitada por escrito. “Nos iludiram com a teoria de que a água não tem cor, cheiro nem sabor/ Quanto à cor vai à torneira lá de casa e verás a existência da cor/ e com uma variação de bairro para bairro/ pois ela vem vestida em 40 tons de múkua/ mas levantámos as mãos a dizer que está tudo bem (…)”, reclama Pedro Bélgio , no seu poema falado “40 Tons de Múkua”. “O senhor Anlide Lufuangula e o seu colega queriam que nós explicásse­mos o que significa ‘40 Tons de Múkua’, porque eles acham que o título tem uma mensagem codificada de subversão”, revela Harvey Madiba. A múcua, ou múkua, é a fruta do imbondeiro. De seguida, o censor da AGT procedeu à examinação da segunda prova do “crime”, a faixa “Já chega”, de Mac D. “Governante­s gatunos, já chega/ assassinat­os, já chega/ falta de emprego, já chega/ vossa riqueza ilícita, chega”, canta Mac D. “Sinceramen­te, a nossa juventude sofre mais/ não finjam que não sabem do que a gente é capaz/ não finjam mesmo/ quando a hora chegar/ quando as cabeças estiverem levantadas e os punhos no ar / quando quebrarmos os grilhões / aí entenderão”, vaticina o rapper Mac D. Harvey Madiba explica que o delegado da AGT — feito juiz em tribunal ad-hoc — lhe perguntou se havia ditadura em Angola. “Eu respondi que o comportame­nto do chefe da AGT é um exemplo da ditadura que se vive neste país”, conta. Finalmente, ouviu-se a faixa “Angola vai mal”, dos Fat Soldiers e Raf Tag, a terceira a passar pela censura de Anlide Lufuangula.

“Nos ministério­s ocorre um mistério evidente/ o dinheiro desaparece assim misteriosa­mente/ e tudo é orquestrad­o por um dinossauro/ que tem a filha sortuda com galinhas de ovos de ouro”, cantam os rappers. “O Sr. Lufuangula perguntou-nos se achávamos ético chamar o presidente de dinossauro. Nós dissemos que o dinossauro é um animal pré-histórico, com muito poder. Também explicámos que a filha é a nossa irmã Isabel, que ficou rica a vender ovos, como ela própria afirmou numa entrevista”, recorda Harvey Madiba. Segundo os activistas, após a sessão ad-hoc de censura, Anlide Lufuangula deu como comprovado o “carácter subversivo” dos conteúdos musicais, aconselhou os jovens a terem mais calma e “pediu-nos para não falarmos à imprensa sobre o sucedido”. Rui Verde enfatiza que “os CDS só poderiam ser apreendido­s se os rappers incitassem efectivame­nte à violência ou a distúrbios. Não se podem apreender CDS por conterem músicas críticas ao presidente e à governação. A Constituiç­ão e a Lei não permitem tal. Nem mesmo a lei invocada pelas autoridade­s”. Fazem parte do elenco de artistas angolanos MCK, o poeta falante Fridolim Kamolakamw­e, Mona Dya Kidi, Kool Kleva, Kid MC, Dr. Romeu e Sanguinári­o. Do Brasil, contribuem DJ Preto, Pamelloza e Gog. De Moçambique, o álbum conta com um total de dez artistas, incluindo Milton Gulli, Ângelo Comé e Bruno Huca, que interpreta­m, em estilo marrabenta, a faixa “Angola ninguém te enrola”. De Portugal vem, em trova, o hino “Liberdade já”, pela voz de Joana Alegre e Bernardo Fesch. “Depois do encontro com o chefe da AGT, dois agentes da Polícia Nacional, fardados, levaram-nos para um canto, mesmo lá no Terminal de Cargas, para sermos revistados. Queriam revistar-nos a nu. Irritámo-nos, e só depois o comandante ordenou o cancelamen­to da revista a nu.” (*) Maka Angola

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