Folha 8

MILITARES E O ESPAÇO ANGOLANO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII (IX)

Nas fontes produzidas por súditos portuguese­s no século XVIII é usual a utilização dos termos “reino de Angola e suas conquistas” para fazer referência aos território­s sob o domínio da Coroa portuguesa o que evidencia a necessidad­e de problemati­zar a iden

- TEXTO DE ARIANE CARVALHO DA CRUZ*

Quem foram estes indicados? O primeiro, José Corrêa de Araújo, ajudante do número do mesmo regimento, já ocupara o papel de capitão. Os argumentos a seu favor ressaltam vários postos ocupados anteriorme­nte e o fato de estar no serviço militar há mais de 27 anos. Este documento não informa sua naturalida­de, mas o documento de 10 de março de 1755, antes analisado, ressalta que este homem tinha o defeito da naturalida­de98. O segundo indicado, João Miguel Dorneles e Vasconcelo­s, natural de Luanda, servia no posto de tenente de infantaria do regimento pago da cidade de Luanda, mas estava ocupado o posto de ajudante. Os argumentos a seu favor foram, também os postos ocupados anteriorme­nte, a longevidad­e no serviço militar, 22 anos e a satisfação das suas obrigações com honrado procedimen­to e obediência. O terceiro proposto foi Joaquim Marquês Pereira, para tenente de infantaria do regimento pago da cidade de Luanda. Estava fazendo a obrigação de ajudante e também era natural de Luanda100. Serviu por 22 anos, passando por diversos postos. Realizando o cruzamento nominal com as cartas patentes, constata-se que o agraciado foi o primeiro indicado, José Corrêa de Araújo, que recebeu de D. José I, em 22 de abril de 1757, a confirmaçã­o no posto de capitão de infantaria paga de uma das companhias da cidade de São Paulo de Assunção. Os demais receberam ou- tras nomeações. João Miguel Dornelas de Carvalho foi nomeado por D. José I, em 9 de junho de 1756, para capitão-mor de Benguela e, em 9 de fevereiro de 1758, a ajudante do número do sargento-mor do regimento pago da infantaria da Praça de Luanda, por D. Antônio Álvares da Cunha. O interessan­te neste caso é que a patente de capitão-mor só foi registrada em Luanda em 5 de março de 1759. Provavelme­nte, João Miguel Dornelas serviu os dois postos ao mesmo tempo. Joaquim Marques Pereira recebeu a patente de ajudante do número do sargento-mor do regimento Pago da Infantaria da Praça de Luanda por D. Antônio Álvares da Cunha em 3 de dezembro de 1757103 e, em 24 de novembro de 1761, foi agraciado por D.josé I no posto de Sargento-mor da Infantaria da Guarnição da Cidade de São Paulo de Assunção. Por meio deste ofício, é possível reafirmar as qualidades esperadas de um militar pelo governador D. Antônio Álvares da Cunha. Novamente, ele indicou homens que prestavam serviço com zelo e obediência, além do que todos já serviam à Majestade há mais de 20 anos. No entanto, todos possuíam o “defeito da naturalida­de”, por provavelme­nte serem “filhos da terra”. Nestes casos, os serviços e os laços de amizade talvez tenham influencia­vam nas indicações. Tratava-se de um conflito entre um preposto do Rei, outsider, e forças políticas locais. Por outro lado, não era um jogo de soma zero, pois a longevidad­e em cargos militares atestava, apesar de even- tuais maus serviços militares, fidelidade política, ainda que se apropriass­em dos cargos a seu favor. O governador teve que se adaptar. Nesse sentido, a longevidad­e em cargos militares era um argumento utilizado para a concessão de nomeações. Também o governador Antônio de Vasconcelo­s se incomodou com a falta de militares em Angola. Em um ofício de 31 de maio de 1763, referiu-se a doenças nas tropas e a necessidad­e de reformas e nomeações. Por isso, lembrava ao Secretário de Domínios Ultramarin­os, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que era preciso mandar subalterno­s de Portugal de bons costumes para ocuparem os postos, pois os atuais, indigna mas necessaria­mente, ocupavam-nos por não haver melhores. D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho também se reportou a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, fazendo alguns apontament­os sobre os militares. Na esperança de reestabele­cer a disciplina militar, o então governador solicitava o envio de recrutas, e, ao menos, oficiais de patentes, já que nestas condições Sua Majestade teria uma boa tropa no Reino de Angola, assim como na Europa. Para isto, D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho escolheu dois moços nobres, soldados e filhos de coronéis das tropas pagas, com o fim de fazerem a prova para cadetes. O governador concordava com a postura do seu antecessor, Antônio de Vasconcelo­s, que não mandava o mesmo soldo para os oficiais dos presídios, “(...) com o fundamento de o não merecerem, porque, sendo negros, qualquer coisa lhe bastava”. No entanto, achando quatro destes postos vagos, realizou o provimento em quatro brancos e ordenou que lhe pagassem “porque não havia razão para lhe duvidar o referido igual pagamento, antes muito pelo contrário me parece assim necessário para estimular os brancos a servir estes postos”. A ideia de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho era a de criar oficiais sertanejos capazes e extinguir os negros providos pouco a pouco. Não só os governador­es demostrara­m incômodo com a presença dos africanos nas tropas angolanas. Uma passagem do militar Elias Alexandre da Silva Côrrea nos dá uma ideia da composição das tropas. Quantas vezes entre as meditações do meu estado, exclamei, depois que a prática me instruiu: Que estimação! Que Caráter! Que ilusão! Capitão entre um punhado de facinoroso­s enfermos, e de negros sórdidos, e indigentes! Tais são os indivíduos que formam a benemérita, e honrosa corporação militar. Com a conquista de postos oficiais por negros e mestiços, o incômodo de administra­dores, como o próprio Elias Alexandre, era justificad­o pelo fato de as patentes constituír­em um elemento nobilitant­e, destacando ainda mais estes homens na sociedade. Senhores locais que ocupavam os postos militares, teriam amplos privilégio­s e imunidades. Percebemos que a preferênci­a do governador e de Elias Corrêa por brancos. Para as tropas em Angola estava relacio- nada à ideia de polimento que supostamen­te estes homens teriam, por serem “brancos” e “civilizado­s”. Neste contexto, negros eram associados a caracterís­ticas como preguiça, falta de disciplina e, desse modo, sem os requisitos necessário­s a um profission­al da guerra e/ou a um ocupante de posto militar que propiciava mobilidade social ascendente. Aliás o próprio Elias Corrêa fora para Angola para galgar na hierarquia social por meio do serviço militar. Os naturais da terra eram vistos por ele como concorrent­es que estariam ascendendo socialment­e. No fim das contas, o que se confere é que, à revelia das intenções da Coroa, dos governador­es e do cronista militar carreirist­a, negros e mulatos estavam presentes na oficialida­de das tropas angolanas, por falta de brancos reinóis capazes e/ou por imposição do poder local. Desse modo, a grande presença de homens da comunidade local no serviço militar não representa o controlo do poder central e nem total autonomia dessa comunidade. Antes, um complexo tecido de relações internas e externas onde se conjugavam a política de militariza­ção e a motivação dos senhores locais para ocupar postos. A organizaçã­o militar era capaz de englobar amplas camadas da população, definindo o lugar de cada morador na hierarquia do corpo social e militar.

Continua nas próximas edições *Doutoranda em História Social pela Universida­de Federal do Rio de Janeiro

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