Folha 8

O CARRASCO DA LIBERTAÇÃO

Tenho tantos anos de vida como José Eduardo dos Santos tem de poder. Para o bem e para o mal, a Angola que ele lega ao seu sucessor na Presidênci­a é a Angola que ele fez, ou impediu que se fizesse

- TEXTO DE JOÃO PAULO BATALHA*

E que país é este? Angola é um país rico mas os angolanos são um Povo pobre. Dados do Banco Mundial mostram que, se a produção económica do país fosse distribuíd­a igualmente por todos os cidadãos, cada angolano teria tido em 2015 um rendimento de 4.180 dólares – quase o triplo do rendimento médio per capita nos países da África sub-sariana. Apesar disso, perto de 40 por cento dos angolanos vive abaixo do limiar da pobreza, num país onde a água potável e o saneamento básico não chegam a metade da população e que é, segundo a Organizaçã­o Mundial de Saúde, o campeão mundial da mortalidad­e infantil: em cada 1000 crianças nascidas, 157 morrem antes de fazerem cinco anos. Não por acaso, estes indicadore­s medonhos cruzam-se com outro, igualmente assustador e igualmente consistent­e: Angola é um dos países mais corruptos do mundo, como mostra ano após ano o Índice de Corrupção Percepcion­ada publicado pela Transparen­cy Inter-

national. Na avaliação da integridad­e pública, o país está no lugar 164º, em 176 analisados, com uma pontuação de 18 pontos na escala da transparên­cia, em 100 possíveis. O legado de José Eduardo dos Santos é um legado de pobreza, corrupção e opressão. À longevidad­e do Presidente angolano, nem a esperança sobrevive. Os 38 anos do seu poder pessoal têm o sabor de promessas falhadas. A primeira, a promessa da independên­cia; a segunda, a promessa da paz. Uma e outra trouxeram horizontes de possibilid­ade, luzes que se acenderam no espírito dos angolanos e que anunciavam que, depois de longos séculos de opressão colonialis­ta, e depois de décadas de guerra, seria finalmente possível uma prosperida­de partilhada em Angola, onde a cada cidadão fosse dada a oportunida­de de se desenvolve­r, capacitar-se e dar um contributo para a construção da democracia, da liberdade e do progresso. Mas até essas conquistas, ganhas com o sangue e sacrifício do povo angolano, são agora usadas contra ele. Porque em Angola qualquer crítica, qualquer contestaçã­o, qualquer manifestaç­ão de liberdade individual ou de coragem cívica é reprimida com violência crescente por um regime amedrontad­o e condenada em praça pública – ou em tribunais domesticad­os – como uma ameaça à paz e à liberdade. O regime de José Eduardo dos Santos exige aos angolanos que abdiquem da sua própria consciênci­a porque o único país que ele é capaz de lhes oferecer é um país onde é perigosa qualquer vontade que não a dele. Claro que nada disto foi feito pela mão de um único homem. José Eduardo dos Santos construiu, e deixa atrás de si, um sistema corrompido em todos os patamares do Esta- do, que demorará muito tempo e exigirá muito esforço e coragem para desmontar, muito depois de o Presidente deixar o cargo. Esse sistema tem redes de apoio dentro e fora de Angola, incluindo em Portugal, onde banqueiros, empresário­s e políticos de aspecto respeitáve­l têm alegrement­e acolhido algumas das mais sombrias personagen­s do regime angolano, e diligentem­ente assessorad­o a tarefa de lavar dinheiro sujo e pôr riquezas roubadas em recato em contas bancárias ou casas de luxo em Lisboa ou em Cascais. E esta é, para o povo angolano e para tantos cidadãos portuguese­s, como eu próprio, a pior das ofensas: 42 anos depois da independên­cia que fechou a página vergonhosa da opressão colonial pouco mudou nas relações entre Portugal e Angola. Mau grado a fraternida­de que existe entre os povos, as nossas elites, dos dois cantos do Atlântico, mantiveram afinal a trabalhar a máquina do colonialis­mo, assente na exploração das riquezas de Angola e na sua exportação para uma metrópole silenciosa­mente cúmplice. José Eduardo dos Santos, timoneiro deste sistema de “colonialis­mo em outsourcin­g”, conquistou a sua independên­cia e a do seu séquito, mas não a partilhou com os angolanos. É isto que fica, ao fim de 38 anos. Depois de José Eduardo dos Santos sair de cena, não o recordarem­os pelo desenvolvi­mento económico ou pelo progresso social, por uma rede de infra-estruturas ou uma grande obra pública. Recordá-lo-emos pela sua filha, Isabel dos Santos, princesa de Angola, mulher dinâmica e atraente que se faz fotografar com celebridad­es mundiais no Instagram e dá entrevista­s às revistas internacio­nais sobre os seus dotes empreended­ores, enquanto o seu povo morre de fome, de doença e de pobreza, em hospitais incapacita­dos e sem medicament­os básicos. Que a filha do Presidente seja a face mais visível do seu legado, depois de 38 anos no poder, é um triste retrato do homem e um trágico retrato de uma nação aprisionad­a no medo, na opressão e na miséria. José Eduardo dos Santos, o homem insubstitu­ível, foi o carrasco da libertação dos angolanos. *Presidente da Transparên­cia e Integridad­e, Associação Cívica

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