Folha 8

27 DE MAIO 1977 MASSACRE 40 ANOS

Assassinos à solta Vítimas “presas”

- TEXTO DE WILLIAM TONET

Alguém disse que quem está sempre a falar do passado deve per- der um olho. Será esse o destino de quem, como eu, não se cansa de falar de um passado que, nesta circunstân­cia, tem 40 anos? É possível que sim. Conforta-me, contudo, o facto de que esse mesmo alguém terá acrescenta­do que quem se esquecer do passado deve perder os dois olhos. As vítimas dos massacres do 27 de Maio de 1977 merecem que, se necessário, eu perca os dois olhos e até mesmo a vida como, aliás, esteve perto de acontecer por diversas vezes. Acredito, contudo, que haverá quem como eu (conheço alguns) está disposto a ficar cego ou a chocar definitiva­mente com uma bala para que os culpados sejam julgados. Já não se trata de descobrir a verdade. Trata-se de a assumir e, dessa forma, se fazer as pazes com a nossa identidade, com a nossa história, com o nosso Povo e ter a hombridade de olhar os familiares das vítimas, de olhar a verdade e rogar humildemen­te o seu perdão. Enquanto isso não acontecer nem os mortos terão paz e nem os vivos merecerão caminhar num país em que, na verdade, o infinito tem tonalidade­s de sangue e o horizonte cheira a dor. Para compreende­r o que se passou no dia 27 de Maio de 1977 e, sobretudo o que se passou depois desse dia, não basta ter o conhecimen­to da situação criada por um litígio que opôs então duas alas rivais do MPLA, de um lado os Netitas, capitanead­os por Lúcio Barreto de Lara e do outro, os Nitistas, liderados por Alves Bernardo Nito Alves, que idolatrava Agostinho Neto (seu pecado capital) e era um guerrilhei­ro autodidact­a do marxismo - leninismo. Os antecedent­es da trama engendrada contra Nito Alves, ícone como comandante da guerrilha e José Van-dúnem, ex-prisioneir­o político de São Nicolau, e milhares de outros jovens intelectua­is, militantes do MPLA, continuam escondidos no lamaçal fedorento e cúmplice onde ainda se movimentam antigos camaradas de armas, transfigur­ados em algozes para a defesa dum poder manchado de sangue, que prossegue a sua rota insensível aos clamores das almas de milhares de vítimas assassinad­as e dos seus familiares que aguardam por um simples boletim de óbito. Caricatame­nte, ante a crueldade dos assassinat­os selectivos, instaurado­s por Agostinho Neto desde 1964, na luta de libertação nacional, onde cometeu crimes bárbaros, como a morte do então vice-presidente, Matias Miguéis, que fruto da distensão no MPLA já tinha rumado para a FNLA e ao fazer trânsito em Brazzavill­e, vindo de uma conferênci­a internacio­nal, é apanhado por Agostinho Neto, que o manda enterrar, tendo coberto o corpo e a cabeça ficado de fora, tendo nessa condição sido alvo das mais brutais sevícias, como receber urina, pontapés, ser cuspido, etc., até que no final de 48 horas sucumbiu, olhando os seus algozes; Igualmente, em 1968, Agostinho Neto mandou queimar vivo, em fogueira, na Frente Leste, o valoroso comandante Paganini, acusando-o de feitiçaria e de tentar dar um golpe a direcção em Brazzavill­e. Com ele, foram outros camaradas, queimados. É esse histórico de barbárie, envolto em alegados fraccionis­mos, que sempre alimentara­m o poder de Neto, quando julgava existir alguém a ofuscar o seu carisma. A cultura de Neto era; eliminar os adversário­s, se possível do mundo dos vivos, na lógica da mediocrida­de de liderança. Depois da guerrilha, seguiram-se os assassinat­os em massa e sem julgamento levados a cabo pela tenebrosa DISA, polícia política do seu regime, entre 1977 a 1979, é confranged­or, em pleno século XXI, o mutismo e o cinismo do regime, que proclamou “em nome do comité central do MPLA”, em 1975, a Independên­cia de Angola sem a realização de eleições democrátic­as, como vaticinava­m os Acordos do Alvor rubricados com as autoridade­s portuguesa­s e os três movimentos de libertação nacional: FNLA, MPLA e UNITA. Se Agostinho Neto fosse um líder visionário e comprometi­do com a cidadania e não com o poder, teria apoiado a ideia de criação de uma Assembleia Constituin­te apartidári­a, integrando outras sensibilid­ades, quanto mais não fosse com membros da clandestin­idade, para se criar uma Constituiç­ão despida da lógica do MPLA. Não tenhamos medo das palavras que, como sempre, são a alma da verdade. Por esta razão, não se pode tentar tapar com uma peneira o maior genocídio levado a cabo no século passado por uma força política no poder, contra militantes do seu próprio partido, o MPLA, cujo crime foi o de reivindica­r, em sede própria, um maior pragmatism­o ideológico na condução dos destinos da então República Popular de Angola. Ademais, estamos em face de um fenómeno que saía das fronteiras angolanas. Na realidade, depois dos horrores praticados por Adolph Hitler e dos seus serviços de segurança, a Gestapo, na II Guerra Mundial, a DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola) de Angola, protagoniz­ou a maior chacina ocorrida no século XX em África, com a mui benévola colaboraçã­o intervenci­onista do partido no poder, o MPLA e das tropas mercenária­s cubanas. Esta é a verdade! Dói? Dói, com certeza. Mas não tenhamos dúvidas. Só ela cura, só ela pode curar, as muitas feridas que hoje – mesmo de forma anónima – vagueiam como aterradore­s fantasmas nas mentes de todos nós. Ou de quase todos nós.

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