27 DE MAIO 1977 MASSACRE 40 ANOS
Assassinos à solta Vítimas “presas”
Alguém disse que quem está sempre a falar do passado deve per- der um olho. Será esse o destino de quem, como eu, não se cansa de falar de um passado que, nesta circunstância, tem 40 anos? É possível que sim. Conforta-me, contudo, o facto de que esse mesmo alguém terá acrescentado que quem se esquecer do passado deve perder os dois olhos. As vítimas dos massacres do 27 de Maio de 1977 merecem que, se necessário, eu perca os dois olhos e até mesmo a vida como, aliás, esteve perto de acontecer por diversas vezes. Acredito, contudo, que haverá quem como eu (conheço alguns) está disposto a ficar cego ou a chocar definitivamente com uma bala para que os culpados sejam julgados. Já não se trata de descobrir a verdade. Trata-se de a assumir e, dessa forma, se fazer as pazes com a nossa identidade, com a nossa história, com o nosso Povo e ter a hombridade de olhar os familiares das vítimas, de olhar a verdade e rogar humildemente o seu perdão. Enquanto isso não acontecer nem os mortos terão paz e nem os vivos merecerão caminhar num país em que, na verdade, o infinito tem tonalidades de sangue e o horizonte cheira a dor. Para compreender o que se passou no dia 27 de Maio de 1977 e, sobretudo o que se passou depois desse dia, não basta ter o conhecimento da situação criada por um litígio que opôs então duas alas rivais do MPLA, de um lado os Netitas, capitaneados por Lúcio Barreto de Lara e do outro, os Nitistas, liderados por Alves Bernardo Nito Alves, que idolatrava Agostinho Neto (seu pecado capital) e era um guerrilheiro autodidacta do marxismo - leninismo. Os antecedentes da trama engendrada contra Nito Alves, ícone como comandante da guerrilha e José Van-dúnem, ex-prisioneiro político de São Nicolau, e milhares de outros jovens intelectuais, militantes do MPLA, continuam escondidos no lamaçal fedorento e cúmplice onde ainda se movimentam antigos camaradas de armas, transfigurados em algozes para a defesa dum poder manchado de sangue, que prossegue a sua rota insensível aos clamores das almas de milhares de vítimas assassinadas e dos seus familiares que aguardam por um simples boletim de óbito. Caricatamente, ante a crueldade dos assassinatos selectivos, instaurados por Agostinho Neto desde 1964, na luta de libertação nacional, onde cometeu crimes bárbaros, como a morte do então vice-presidente, Matias Miguéis, que fruto da distensão no MPLA já tinha rumado para a FNLA e ao fazer trânsito em Brazzaville, vindo de uma conferência internacional, é apanhado por Agostinho Neto, que o manda enterrar, tendo coberto o corpo e a cabeça ficado de fora, tendo nessa condição sido alvo das mais brutais sevícias, como receber urina, pontapés, ser cuspido, etc., até que no final de 48 horas sucumbiu, olhando os seus algozes; Igualmente, em 1968, Agostinho Neto mandou queimar vivo, em fogueira, na Frente Leste, o valoroso comandante Paganini, acusando-o de feitiçaria e de tentar dar um golpe a direcção em Brazzaville. Com ele, foram outros camaradas, queimados. É esse histórico de barbárie, envolto em alegados fraccionismos, que sempre alimentaram o poder de Neto, quando julgava existir alguém a ofuscar o seu carisma. A cultura de Neto era; eliminar os adversários, se possível do mundo dos vivos, na lógica da mediocridade de liderança. Depois da guerrilha, seguiram-se os assassinatos em massa e sem julgamento levados a cabo pela tenebrosa DISA, polícia política do seu regime, entre 1977 a 1979, é confrangedor, em pleno século XXI, o mutismo e o cinismo do regime, que proclamou “em nome do comité central do MPLA”, em 1975, a Independência de Angola sem a realização de eleições democráticas, como vaticinavam os Acordos do Alvor rubricados com as autoridades portuguesas e os três movimentos de libertação nacional: FNLA, MPLA e UNITA. Se Agostinho Neto fosse um líder visionário e comprometido com a cidadania e não com o poder, teria apoiado a ideia de criação de uma Assembleia Constituinte apartidária, integrando outras sensibilidades, quanto mais não fosse com membros da clandestinidade, para se criar uma Constituição despida da lógica do MPLA. Não tenhamos medo das palavras que, como sempre, são a alma da verdade. Por esta razão, não se pode tentar tapar com uma peneira o maior genocídio levado a cabo no século passado por uma força política no poder, contra militantes do seu próprio partido, o MPLA, cujo crime foi o de reivindicar, em sede própria, um maior pragmatismo ideológico na condução dos destinos da então República Popular de Angola. Ademais, estamos em face de um fenómeno que saía das fronteiras angolanas. Na realidade, depois dos horrores praticados por Adolph Hitler e dos seus serviços de segurança, a Gestapo, na II Guerra Mundial, a DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola) de Angola, protagonizou a maior chacina ocorrida no século XX em África, com a mui benévola colaboração intervencionista do partido no poder, o MPLA e das tropas mercenárias cubanas. Esta é a verdade! Dói? Dói, com certeza. Mas não tenhamos dúvidas. Só ela cura, só ela pode curar, as muitas feridas que hoje – mesmo de forma anónima – vagueiam como aterradores fantasmas nas mentes de todos nós. Ou de quase todos nós.