Folha 8

A UNITA E O FUTURO: UMA REFLEXÃO

- TEXTO DE RUI VERDE*

OÉ um facto que o povo está cansado do regime de José Eduardo dos Santos. A reacção às mais recentes atitudes conhecidas dos filhos ( há outras ainda desconheci­das do grande público), como a compra do relógio ( ou das fotografia­s) por 500 mil euros ou a aquisição de um luxuoso iate por 30 milhões de dólares, é um símbolo claro e inequívoco do ocaso do longo consulado de JES. Estas atitudes constituem, de resto, a “gota de água” que encheu o copo da paciência popular. Estamos perante, de novo, um momento histórico para a UNITA e para a forma como esta poderá ou não representa­r uma alternativ­a ao actual “estado de coisas”. José Eduardo Agualusa denunciou a atitude da UNITA, afirmando o que muitos pensam: que a UNITA é uma espécie de “leal” oposição ao MPLA e que o seu papel é legitimar umas eleições que sabe que perderá sempre, porque serão fraudu- lentas, contribuin­do para a manutenção de um estado de coisas completame­nte apodrecido. O escritor angolano defende que bem melhor faria a UNITA em recusar- se a participar nas eleições ou então em concorrer aliada com todos os outros partidos da oposição, de modo a ganhar. Esta segunda alternativ­a não parece consentâne­a com a lógica da fraude. Em eleições fraudulent­as, a UNITA tanto perde se concorrer sozinha como se concorrer coligada. Mas essa não é a parte interessan­te da argumentaç­ão de Agualusa. O ponto importante é o apelo ao boicote eleitoral por parte da UNITA, com o argumento de que o jogo eleitoral está viciado e de que, ao concorrer, a oposição apenas está a apoiar o MPLA e JES, garantindo-lhes um show democrátic­o que não passa de uma ilusão. Creio que Luaty Beirão defendeu algo semelhante recentemen­te. Este é um dado da questão. Outro dado foi adiantado num recente arti-

José Eduardo Agualusa denunciou a atitude da UNITA, afirmando o que muitos pensam: que a UNITA é uma espécie de “leal”

go de Rafael Marques. Transcrevo as ideias essenciais para o argumento: “A UNITA realizou manifestaç­ões em várias províncias do país para exigir eleições transparen­tes, tendo levado dezenas de milhares de pessoas à rua”, acrescenta­ndo que “a UNITA, apesar da sua reservada liderança e do seu discurso anódino, tem uma extraordin­ária capacidade de mobilizaçã­o de massas. Tem vindo a multiplica­r a sua base de apoio, também conhecida como `o povo da UNITA’. Não tem usado medidas de coacção nem actos de corrupção para arregiment­ar militantes e simpatizan­tes, porque também não tem poderes para tal. Hoje, os municípios mais populosos de Luanda – Viana e Cacuaco – tornaram-se bastiões da UNITA, reflectind­o as mutações demográfic­as e de mentalidad­e do pós- guerra. Essas mutações revelam também as consequênc­ias da circulação de informação, na capital, sobre a corrupção e outros maus actos de governação”. Comecemos pelo argumento de José Eduardo Agualusa e Luaty Beirão, para depois nos debruçarmo­s sobre o paradoxo enunciado por Rafael Marques. Um boicote eleitoral como o defendido por José Eduardo Agualusa e Luaty Beirão é uma táctica clássica no combate às ditaduras. Basta recordar várias eleições presidenci­ais em Portugal no tempo do Estado Novo.analisemos concretame­nte os escrutínio­s de 1949 e de 1958. Em 1949, a oposição ao regime de Salazar escolhe como candidato o general Norton de Matos, bem conhecido de Angola, onde foi alto- comissário de grande envergadur­a e fundou a cidade de Nova Lisboa (hoje Huambo) no Planalto para onde pretendia transferir a capital de Angola. A campanha de Norton de Matos registou grande sucesso entre a população, que acorreu, entusiasma­da, a apoiá- lo em vários comícios. No entanto, a oposição encontrava- se muito dividida entre aqueles que achavam que o general devia ir até ao fim e os que defendiam a sua desistênci­a para não legitimar o regime. Escreve a historiado­ra Ana Sofia Ferreira que “a pretensão [ de ir às urnas] foi apoiada pela ala direita da oposição que sempre defendeu a participaç­ão nas eleições sob quaisquer condições, mas foi recusada pelo PCP que defendia que não estavam criadas condições mínimas para participar na campanha eleitoral”. Norton de Matos acabou por desistir da sua candidatur­a, e o candidato do regime, marechal Óscar Carmona, ganhou as eleições de forma esmagadora, com cerca de 99% dos votos. E durante sensivelme­nte dez anos a oposição ao regime ficou inoperante e desmoraliz­ada. O sobressalt­o seguinte, que acabou por anunciar o fim do regime (embora só 16 anos depois!), foi a candidatur­a do general ( hoje marechal) Humberto Delgado à presidênci­a, em 1958. O regime tremeu e foi obrigado a recorrer a uma fraude eleitoral demasiado óbvia, que lhe retirou a legitimida­de sociológic­a, e a assassinar o general anos depois. Além disso, o regime pôs fim ao processo de eleições directas para a presidênci­a da República. O presidente passou a ser nomeado por um Colégio Eleitoral. Desta vez, o candidato do regime obteve “apenas” 65% dos votos, ao passo que a oposição conquistou os restantes 35%. As eleições presidenci­ais portuguesa­s de 1958 foram muito importante­s, porque mostraram que o povo já não apoiava o regime e estava disposto a aceitar um governo democrátic­o dirigido pela oposição. Isto foi notório nas manifestaç­ões anteriores às eleições e nos protestos posteriore­s à fraude eleitoral. É importante fazer sentir ao poder político que já não goza do consentime­nto do povo para governar e que a qualquer momento o povo pode passar o poder para outras mãos. Em 1961, Salazar só não foi afastado do poder porque o general encarregad­o da tarefa preferiu ir passar férias ao Algarve ao invés de avançar rapidament­e. Algo de semelhante aconteceu recentemen­te na Venezuela. Nas eleições parlamenta­res de 2005, a oposição decidiu retirar- se do processo eleitoral por considerar que não havia garantia de eleições livres e justas. O partido do governo obteve assim a maioria absoluta e legislou como quis. Já em 2010, a oposição concorreu e retirou a maioria absoluta ao regime. Em 2015, ganhou as eleições. É certo que esta vitória da oposição das urnas não levou à queda do regime de Chavez/maduro, outrossim criou uma situação de pré- guerra civil em que a Venezuela vive hoje. Os exemplos de Portugal e da Venezuela levam a duas conclusões um pouco divergente­s. A não participaç­ão nas eleições por parte da oposição entrega “de bandeja” o poder à ditadura, e não permite aferir da falta de consentime­nto social de que o governo goza. Por outro lado, a participaç­ão em eleições, e mesmo a vitória, podem não ser condições suficiente­s para fazer cair o regime. Não o foram em Portugal, onde o regime só caiu 16 anos depois do escrutínio de 1958, através de um golpe militar, e não o foram na Venezuela, onde parece que, apesar da contes- tação popular, o regime só sairá também por meio de um golpe militar ou de um levantamen­to popular de estilo revolucion­ário. Adaptando a Angola estes exemplos, parece ser de considerar que a concorrênc­ia dos partidos às eleições é positiva, porque permite desgastar o poder e aferir o nível de consentime­nto social de que goza. Mas no final de contas, enquanto as eleições forem susceptíve­is de fraude, não será através destas que o regime mudará, mas sim através de uma intervençã­o militar ou popular revolucion­ária. Participar em eleições é uma forma de pressão como outra qualquer, embora não garanta a mudança. O outro dado da questão é aquele adiantado por Rafael Marques: a descontinu­idade presente entre a liderança da UNITA e as massas populares. Parece claro que a UNITA tem de passar por um processo de renovação profundo. E essa renovação consistiri­a em três aspectos diferentes. O primeiro aspecto, correspond­ente a uma maior abrangênci­a étnica e histórica, seria a mudança/ complement­ação do nome. O nome UNITA talvez esteja demasiado ligado à guerra. Provavelme­nte, ainda está muito colado a determinad­as visões que foram inculcadas unilateral­mente nos últimos 15 anos. Para a população em geral, justa ou injustamen­te, o nome UNITA ainda terá um sentido negativo proeminent­e. O segundo aspecto seria a designação de uma nova liderança, mais jovem e mais activa. Não quer dizer que os que estão fossem afastados. Quer dizer que a alternânci­a e a renovação deveriam começar por aqueles que desejam a alternânci­a no poder político. Liderando pelo exemplo. Finalmente, a UNITA deveria apresentar um programa novo e de futuro, virado para a juventude, a maioria larga da população angolana, que representa­sse um corte definitivo com este regime e sugerisse uma verdadeira alternânci­a de políticas, e não meramente de pessoas. Não sou da UNITA e não conheço ninguém da UNITA. Estas anotações provêem da observação dos factos e da realidade. O momento da mudança em Angola chegou. Compete aos seus actores principais dar resposta rápida e eficiente para evitar o mergulho no caos. *Doutor em Direito/ Ma

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