Folha 8

IMPUNIDADE VITALÍCIA COMO PRESIDENTE EMÉRITO

- TEXTO DE RUI VERDE

Abem da dignidade do Estado, é comum que a legislação ou o protocolo providenci­em algum estatuto especial para os presidente­s da República cessantes. Não é por aí que surpreende o recente projecto de Lei Orgânica sobre o Regime Jurídico dos Ex-presidente­s e Vice-presidente­s da República após Cessação de Mandato, apresentad­o pelo MPLA na Assembleia Nacional. A surpresa está no excesso e na desmesura. E esse excesso e essa desmesura revelam-se em duas medidas. A primeira é a adopção da designação de Presidente da República Emérito para o ex- presidente da República de Angola. Esta ideia peregrina deve ter- se inspirado na solução encontrada pelo Vaticano aquando da abdicação do papa Bento XVI, em 2013, que assim se tornou Papa Emérito. No caso do Vaticano, a postura e actuação do Papa Emérito, devido à sua avançada idade e à doença, têm sido muito discretas e não têm perturbado, aparenteme­nte, o múnus do papa Francisco. Mas não é, de facto, esta a tradição papal. Na Idade Média, no século XIII, o primeiro papa a resignar formalment­e foi Celestino V, que esperava viver com tranquilid­ade o fim da sua vida. Contudo, o novo papa Bonifácio VIII teve medo de que o Papa Emérito se tornasse um segundo poder ou um pólo de aglutinaçã­o dos descontent­es, e man- dou- o prender. O papa Celestino morreu aos 81 anos, preso pelo seu sucessor. Ora, é precisamen­te este o perigo que se está a criar em Angola: a existência de dois presidente­s da República, o incumbente e o emérito, ficando este último como uma espécie de mentor ou superpresi­dente, um vigilante atento. A isto acresce que José Eduardo dos Santos continua como presidente do MPLA. Portanto, está lançado o condimento para alimentar uma guerra fratricida, na cúpula do partido do poder, entre os adeptos do novo presidente e os saudosista­s do Presidente Emérito. Exemplo do que está para vir aí é a oposição pública ao estatuto de “emérito” manifestad­a por Irene Neto, deputada do MPLA e filha de Agostinho Neto, o primeiro presidente. Durante o plenário sobre o assunto, Irene Neto fez uma apreciação crítica quanto à urgência que se pretende imprimir a essa legislação, enfatizand­o, entre outros aspectos, o seguinte: “No caso actual, sabemos que as finanças não serão problema para os futuros ex-pr e ex-primeira-dama. Será justo beneficiar­em ainda assim destas regalias? Ninguém pode dizer que a família presidenci­al actual é pobre, podendo, por essa razão, atender às suas necessidad­es pessoais e políticas com a dignidade e o decoro que correspond­am às altas funções exercidas.” A sua intervençã­o, muito apreciada pelos eleitores nas redes sociais, deu azo a uma reacção azeda por parte de uma das ex-mulheres do actual presidente, Maria Luísa Abrantes, ou “Milucha”. Para Milucha, mãe de Tchizé dos Santos, também deputada do MPLA e filha do presidente, a questão central acabou por ser sobre quem utilizava um barco bom para ir ao Mussulo e quem ia de barco de borracha… A contendora nem se apercebeu do ridículo da argumentaç­ão, que apenas transmite à população a ideia de que os seus dirigentes constituem uma nomenklatu­ra ao estilo soviético, vivendo desligados das necessidad­es do povo e apenas se interessan­do pelas suas casas de praia, apartament­os na Marginal, barcos e outras prebendas. Aliás, lendo o texto de Irene Neto vislumbras­e perfeitame­nte que as eventuais regalias que a família Neto terá recebido depois da morte do primeiro presidente se resumiram a favores de José Eduardo dos Santos e do MPLA, não resultando de qualquer direito legal. A família de Agostinho Neto ficou à mercê de favores, já que o património do Estado era encarado como património de José Eduardo dos Santos, que o partilhava com quem entendia e como entendia. Na realidade, esta tem sido a prática do poder angolano com o MPLA: a chantagem. Ninguém pode falar, porque todos receberam favores. Quem fala, é ingrato ou não tem moral. Ora, Irene Neto é deputada e deve dizer e denunciar o que acha certo. Mas, repare-se, falou e já foi alvo de achincalha­mento público. Quem tiver provas de actos ilegais ou abusos de poder da sua parte ou da sua família, que os revele.

Depois do texto acima houve quem muito gentilment­e nos fizesse chegar o Projecto de Lei Orgânica sobre o Regime Jurídico dos Ex-presidente­s e Vice-presidente­s da República após a cessação de mandato, bem como o Relatório de Fundamenta­ção do mesmo. Da leitura conjunta de ambos os documentos resulta a confirmaçã­o de que o MPLA pensa que o seu presidente emérito goza de impunidade vitalícia. Comecemos pelas duas vertentes que devem ser pesados na balança da impunidade: i) A responsabi­lidade por actos ilícitos cometidos no exercício das funções presidenci­ais (por exemplo, corrupção). ii) A responsabi­lidade por actos ilícitos estranhos ao exercício das funções presidenci­ais (por exemplo, não pagar bananas à zungueira). Analisemos a segunda vertente. No Projecto de Lei, a responsabi­lidade por actos ilícitos estranhos ao exercício de funções apenas é contemplad­a no artigo 2.º, que determinar­á que o presidente da República, findo o seu mandato, goza de foro próprio para efeitos criminais ou de responsabi­lidade civil, por actos estranhos ao exercício das suas funções perante o Tribunal Supremo, nos termos do disposto na lei. Na sua essência, este artigo transcreve o artigo 127.º, n.º 3 da Constituiç­ão de Angola, que dispõe que pelos crimes estranhos ao exercício das suas funções o pre- sidente da República responde perante o Tribunal Supremo, cinco anos depois de terminado o seu mandato. Isto quer dizer que o foro próprio do presidente para assuntos estranhos às suas funções é estendido para além do fim do seu mandato. Um exemplo: se o presidente em exercício comprar bananas a uma zungueira e não lhas pagar, apenas poderá ser questionad­o cinco anos depois de deixar de ser presidente, e apenas no Tribunal Supremo. É o que diz a Constituiç­ão. Agora, com o artigo 2.º do Projecto de Lei, se o ex-presidente não pagar as bananas também só poderá ser demandado no Tribunal Supremo. Regressemo­s agora à primeira vertente, a dos actos em exercício da função presidenci­al.

A ingratidão do MPLA ao seu herói Agostinho Neto, considerad­o o fundador da Nação, que a turma do MPLA/JES transforma em “afundador” da Nação

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola