IMPUNIDADE VITALÍCIA COMO PRESIDENTE EMÉRITO
Abem da dignidade do Estado, é comum que a legislação ou o protocolo providenciem algum estatuto especial para os presidentes da República cessantes. Não é por aí que surpreende o recente projecto de Lei Orgânica sobre o Regime Jurídico dos Ex-presidentes e Vice-presidentes da República após Cessação de Mandato, apresentado pelo MPLA na Assembleia Nacional. A surpresa está no excesso e na desmesura. E esse excesso e essa desmesura revelam-se em duas medidas. A primeira é a adopção da designação de Presidente da República Emérito para o ex- presidente da República de Angola. Esta ideia peregrina deve ter- se inspirado na solução encontrada pelo Vaticano aquando da abdicação do papa Bento XVI, em 2013, que assim se tornou Papa Emérito. No caso do Vaticano, a postura e actuação do Papa Emérito, devido à sua avançada idade e à doença, têm sido muito discretas e não têm perturbado, aparentemente, o múnus do papa Francisco. Mas não é, de facto, esta a tradição papal. Na Idade Média, no século XIII, o primeiro papa a resignar formalmente foi Celestino V, que esperava viver com tranquilidade o fim da sua vida. Contudo, o novo papa Bonifácio VIII teve medo de que o Papa Emérito se tornasse um segundo poder ou um pólo de aglutinação dos descontentes, e man- dou- o prender. O papa Celestino morreu aos 81 anos, preso pelo seu sucessor. Ora, é precisamente este o perigo que se está a criar em Angola: a existência de dois presidentes da República, o incumbente e o emérito, ficando este último como uma espécie de mentor ou superpresidente, um vigilante atento. A isto acresce que José Eduardo dos Santos continua como presidente do MPLA. Portanto, está lançado o condimento para alimentar uma guerra fratricida, na cúpula do partido do poder, entre os adeptos do novo presidente e os saudosistas do Presidente Emérito. Exemplo do que está para vir aí é a oposição pública ao estatuto de “emérito” manifestada por Irene Neto, deputada do MPLA e filha de Agostinho Neto, o primeiro presidente. Durante o plenário sobre o assunto, Irene Neto fez uma apreciação crítica quanto à urgência que se pretende imprimir a essa legislação, enfatizando, entre outros aspectos, o seguinte: “No caso actual, sabemos que as finanças não serão problema para os futuros ex-pr e ex-primeira-dama. Será justo beneficiarem ainda assim destas regalias? Ninguém pode dizer que a família presidencial actual é pobre, podendo, por essa razão, atender às suas necessidades pessoais e políticas com a dignidade e o decoro que correspondam às altas funções exercidas.” A sua intervenção, muito apreciada pelos eleitores nas redes sociais, deu azo a uma reacção azeda por parte de uma das ex-mulheres do actual presidente, Maria Luísa Abrantes, ou “Milucha”. Para Milucha, mãe de Tchizé dos Santos, também deputada do MPLA e filha do presidente, a questão central acabou por ser sobre quem utilizava um barco bom para ir ao Mussulo e quem ia de barco de borracha… A contendora nem se apercebeu do ridículo da argumentação, que apenas transmite à população a ideia de que os seus dirigentes constituem uma nomenklatura ao estilo soviético, vivendo desligados das necessidades do povo e apenas se interessando pelas suas casas de praia, apartamentos na Marginal, barcos e outras prebendas. Aliás, lendo o texto de Irene Neto vislumbrase perfeitamente que as eventuais regalias que a família Neto terá recebido depois da morte do primeiro presidente se resumiram a favores de José Eduardo dos Santos e do MPLA, não resultando de qualquer direito legal. A família de Agostinho Neto ficou à mercê de favores, já que o património do Estado era encarado como património de José Eduardo dos Santos, que o partilhava com quem entendia e como entendia. Na realidade, esta tem sido a prática do poder angolano com o MPLA: a chantagem. Ninguém pode falar, porque todos receberam favores. Quem fala, é ingrato ou não tem moral. Ora, Irene Neto é deputada e deve dizer e denunciar o que acha certo. Mas, repare-se, falou e já foi alvo de achincalhamento público. Quem tiver provas de actos ilegais ou abusos de poder da sua parte ou da sua família, que os revele.
Depois do texto acima houve quem muito gentilmente nos fizesse chegar o Projecto de Lei Orgânica sobre o Regime Jurídico dos Ex-presidentes e Vice-presidentes da República após a cessação de mandato, bem como o Relatório de Fundamentação do mesmo. Da leitura conjunta de ambos os documentos resulta a confirmação de que o MPLA pensa que o seu presidente emérito goza de impunidade vitalícia. Comecemos pelas duas vertentes que devem ser pesados na balança da impunidade: i) A responsabilidade por actos ilícitos cometidos no exercício das funções presidenciais (por exemplo, corrupção). ii) A responsabilidade por actos ilícitos estranhos ao exercício das funções presidenciais (por exemplo, não pagar bananas à zungueira). Analisemos a segunda vertente. No Projecto de Lei, a responsabilidade por actos ilícitos estranhos ao exercício de funções apenas é contemplada no artigo 2.º, que determinará que o presidente da República, findo o seu mandato, goza de foro próprio para efeitos criminais ou de responsabilidade civil, por actos estranhos ao exercício das suas funções perante o Tribunal Supremo, nos termos do disposto na lei. Na sua essência, este artigo transcreve o artigo 127.º, n.º 3 da Constituição de Angola, que dispõe que pelos crimes estranhos ao exercício das suas funções o pre- sidente da República responde perante o Tribunal Supremo, cinco anos depois de terminado o seu mandato. Isto quer dizer que o foro próprio do presidente para assuntos estranhos às suas funções é estendido para além do fim do seu mandato. Um exemplo: se o presidente em exercício comprar bananas a uma zungueira e não lhas pagar, apenas poderá ser questionado cinco anos depois de deixar de ser presidente, e apenas no Tribunal Supremo. É o que diz a Constituição. Agora, com o artigo 2.º do Projecto de Lei, se o ex-presidente não pagar as bananas também só poderá ser demandado no Tribunal Supremo. Regressemos agora à primeira vertente, a dos actos em exercício da função presidencial.
A ingratidão do MPLA ao seu herói Agostinho Neto, considerado o fundador da Nação, que a turma do MPLA/JES transforma em “afundador” da Nação