HUMILHADOS, OFENDIDOS E ESQUECIDOS
«Amai a infância; favorecei seus jogos, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não se sentiu saudoso, às vezes, dessa idade em que o riso está sempre nos lábios e a alma sempre em paz? Por que arrancar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão curto que lhes escapa, de um bem tão precioso de que não podem abusar? Por que encher de amarguras e de dores esses primeiros anos tão rápidos, que não voltarão nem para vós nem para eles?» – J. Rousseau, 1973: 61.
Catorze horas e dezassete minutos, e cinco segundos. Assim indica o sistema de registos da máquina fotográfica que captou imagens no local onde trabalham crianças na extração de rochas para fins de construção. Sol escaldante. Terreno árido em algumas áreas e pedregoso noutras, e com pequenas zonas cobertas de vegetação daninha. Entre várias crianças estava uma menina de onze anos. Empenhada. Alta e magra. Rosto pálido e olhos finos. O suor descia entre as curvas situadas no nariz e as bochechas. Outras gotículas serpenteavam sobre diferentes ângulos da têmpora. Suas mãos alongadas seguravam a pá que rasgava burgau entre a areia. Com trancinhas curtas que adornara com punhos rosa e azul. Ainda preserva um sentido estético! Seu corpo magro é amparado com uma blusa rosa roçada e saia da mesma cor. Rasgada com dois furos visíveis: um rentinho ao seio esquerdo (embrionário) e o segundo sobre o abdómen. A saia está sob a proteção do avental rosa fulminante, acima do qual há um adereço branco com os traços amarelo. O que tem abaixo? Nada. A pequena está descalça! A menina prossegue no seu trabalho apesar da presença de estranhos. Quando questionada sobre a hora do início da jornada, respondeu: «começamos a trabalhar as cinco horas da manhã». O diálogo continuou e a questão seguinte foi sobre a hora do pequeno-almoço, uma vez que as cinco horas da manhã já estão no local de trabalho. Ela respondeu sem hesitar: «só às onze é que voltamos para comer pão com chá. A nossa casa é aqui perto. Em 10 minutos chegamos em casa». Como se pode inferir, se a conversa com a pequena, aconteceu por volta das catorze horas, é óbvio que depois do pequeno-almoço, ela e seus companheiros de jornada, regressam ao local de extração. Foi possível constatar que o bairro e a casa-batechapa estão mesmo ali perto. Estão a escassos metros da área de produção. De acordo com a interlocutora, trabalham durante cinco ou quatro dias para poderem encher uma carrinha dina. A carrinha é cheia para além do limite e é vendida ao preço de sete mil Kwanzas. Entre a clientela estão pessoas que adquirem o material para fins de construção privada, mas existem também os revendedores que compram das crianças e revendem a carrinha ao preço de quarenta e cinco ou cinquenta mil Kwanzas. Ainda de acordo com a personagem acima expresso, situações há em que, adultos da zona às ameaçam e se apossam do resultado da produção das crianças e vendem para benefício próprio. Durante a estada no local, foi possível confirmar este comportamento. A menina confirmou não ter cédula nem bilhete de identidade. Esta questão levou-nos a outro questionamento — Você estuda? A resposta foi negativa. Tais factos estendem-se para os seus parceiros de trabalho sobre os quais far-se-á referência mais adiante. A pessoa que vimos referindo chama-se Maura João Baptista. Vive no Bairro da Pedreira, Zona do Pica, Município do Panguila, na província do Bengo. Curiosamente, disse que tem tempo para brincar! Talvez no fim de cada semana. Inquerida se os pais trabalham ou não, respondeu: «a minha mãe vende bolinho. Ela sai muito cedo. A hora que nós saímo[s] para trabalhar». Quanto as razões que motivam o seu trabalho, Maura afirmara que faz para ajudar na renda familiar, comprar roupa, calçado e alimentação. No momento da despedida, entrelaçamos as mãos. A textura era semelhante a de uma adulta dedicada ao trabalho manual pesado. Com calos. Já não preserva a maciez da tez de uma criança de 11 anos, que de acordo com a Biologia, não tem sequer desenvolvida a metade da massa muscular. O relógio marcava dezassete horas e doze minutos. Partimos. A Maura e seus companheiros continuaram as suas vidas.