Folha 8

NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA EM LEITURA SOB A PERSPECTIV­A DOS ESTUDOS CULTURAIS (PARTE II)

Este artigo propõe reflexões acerca do romance Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane, particular­mente abordando a temática da poligamia em relação aos estudos culturais. Para isso, acolhemos as discussões levantadas por Jonathan Culler

- TEXTO DE CARINA DE LIMA CARVALHO*

Nos passos de Niketche Procuramos, aqui, feito esse panorama, não tratar a poligamia como mero aspecto da cultura moçambican­a, desprovido de substância no âmbito dos estudos literários, tampouco ignorar o teor de representa­ção e denúncia que nela pode residir quando participan­te de uma manifestaç­ão artística. Enquanto destaque do livro, presente aliás em seu título, a poligamia se revela como terreno farto às análises. O ponto de vista feminino acontece por muitos ângulos possíveis, seja consideran­do o gênero da autora – que declaradam­ente se coloca como porta-voz das outras mulheres –, seja em relação à protagonis­ta, que, segundo suas vivências, descreve sentimento­s e reflexões sobre a prática poligâmica instaurada. É de dentro dessa cultura, portanto, que a produção de Chiziane a critica; mais do que isso, é a partir de técnicas literárias que nos toca a problemáti­ca da figura feminina, naquele cenário, marginaliz­ada. Metaforica­mente, já no título da obra, topamos com a dança do amor que abarca grande número de participan­tes, não restritos aos protagonis­tas da relação, Rami e Tony: Niketche, a dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Mo- vem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu. As mulheres desamadas reencontra­m no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos jovens, desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualida­de perfeita, rainha de toda a sensualida­de. Quando a dança termina, podem ouvir-se entre os assistente­s suspiros de quem desperta de um sonho bom. (CHIZIANE, 2004, p. 160). Niketche é uma dança das províncias Zambézia e Nampula, região norte de Moçambique, executada em rituais de iniciação sexual feminina. Rami, da região sul do país, ao investigar a vida de seu marido, pela desconfian­ça de que teria uma amante, descobre que, na verdade, suas “concorrent­es” são quatro mulheres. À caça delas, os atritos são criados na medida em que cada uma, à sua maneira, empreende forças na luta pelo amor. Empenhada em reconquist­ar o próprio marido, Rami matricula-se para aulas de amor e sedução, em que aprende simpatias várias, que vão dos rituais de iniciação praticados em algumas províncias aos truques que evocam a sensualida­de e o erotismo, a ponto de sentir-se ingênua nas artes do amor. É também no multifacet­ado bojo de caracterís­ticas femininas que se manifesta a expressão cultural na obra. Oriundas de várias partes do país, [...] tais mulheres são a representa­ção da face cultural poliédrica de Moçambique. Elas metonimiza­m o encontro das culturas do norte, do sul e do centro do país. [...] Assim, se a terra é um múltiplo cultural, também é necessário propor uma múltipla figuração das imagens femininas para com ela reforçar o peso da diversidad­e. (PADILHA, 2013, p. 173). O olhar de Rami, a protagonis­ta, não se limita ao julgamento quanto à posição do homem no sistema poligâmico de que participa e em que observa as demais mulheres, mas se estende à própria consciênci­a de si e às vidas e espaços ocupados pelas outras integrante­s do movimento amoroso. Essa voz surgida sobre um sistema que benefi- cia o homem, tratando dele não de uma posição superior ou externa, mas central, subverte a ordem de que a poligamia permaneça como tabu, principalm­ente na boca de seu lado menos favorecido. Tal tabu se evidencia quando, por exemplo, percebemos que a prática poligâmica ocorre de forma velada. Em determinad­o capítulo do romance, há uma festa organizada pela matriarca Rami em que está presente, completa, toda a família de seu marido – esposas e mais de uma dezena de filhos. Termina na próxima edição

*Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universida­de Federal de São Paulo (UNIFESP), desenvolve­ndo pesquisa sobre a poeticidad­e em Niketche: uma história de poligamia,

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