Folha 8

DIÁRIO DA CIDADE DOS LEILÕES DE ESCRAVOS

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NO PAÍS MALDITO A crise é geral, maldita, total e por isso mesmo chove miséria a cântaros. No país maldito, creio que é prodígio uma criança crescer e chegar à idade adulta. É um milagre, dizem os religiosos. É um mistério das forças ocultas do Universo, dizem os feiticeiro­s. Aqui tudo continua teimosamen­te a ser um problema, – muitos, muitos problemas - é uma fábrica onde se fabricam, inventam problemas. O sentimento actual é como se uma pessoa retrocedes­se no tempo e fosse parar a uma ilha cheia de monstruosi­dades que a todo o momento nos perseguem para nos devorar. Quase que sinto a minha alma a arder porque convivo com gente que não tem alma, que nunca ouviu falar nisso. Meu Deus!, estão a fabricar pessoas sem alma. É por isso que são al- mas do outro mundo. São como plantas cuja raiz não está bem assente no solo e por isso mesmo desabam. “Após um bom jantar estamos dispostos a perdoar a todos, até mesmo os nos- sos parentes.” (Oscar Wilde) Hoje, creio que pela primeira vez exclamei: “meu Deus, tira-me daqui!” Estamos, vivemos na tragédia diária. Parece que não, mas estão a dar cabo das crianças, antes, aos poucos, mas agora muito rápido. E quando se nomeia uma comissão de gestão, deve ler-se: comissão de má gestão. Deve-se legislar para que nas empresas, organismos públicos, escolas, etc., para que seja obrigatóri­o ter pelo menos um conjunto de primeiros-socorros. E desde quando é que cabeças no ar resolvem alguma coisa? Desde nunca! E o famoso seriado há quarenta e dois anos que deslumbra plateias. Ga- nhou, criou muita fama devido às suas promessas nunca cumpridas. Falo do maior êxito de todos os tempos: OS NOSSOS ALDRABÕES. Os sedentos de justiça há muito que estão reprimidos, depois de libertados o chão tremerá, treme sempre. Por aqui já caiu tudo, de modos que não há mais nada para cair. Não entendo porque é que as pessoas se surpreende­m com a prostituiç­ão de menores, pois se há muito as condições estão criadas. Estão distraídas ou fingem que nada sabem, que nada veem? Se uma pessoa é, vive abandonada, claro que não liga, despreza o que lhe dizem.

E eis as nuvens do intenso nevoeiro eleitoral que cada vez mais se adensam. Depois das eleições de 23 de Agosto, o que se aguarda com muita ansiedade é a reposição da justiça, pois que há muito que ela desaparece­u deste Texas. Será possível que continue tudo na mesma, pior? No rumo da nova vida sem futuro, sem esperança? Quando o militarism­o partidário se intromete, o diálogo acaba e começa a intolerânc­ia. Bajular é a arte de conseguir ganhar o pão sem trabalhar. Para onde vai Angola? Para lado nenhum! Há muitos e muitos milhares de anos nada mudou, está tudo na mesma: guerras, desgraças, fome, constantes assassinat­os de crianças, ditaduras, perseguiçõ­es políticas, terrorismo, etc. Que belo panorama, não é? E nos reinos da selvajaria obrigam-nos a viver como animais selvagens. Creio que o mais terrível que nos pode acontecer é ficarmos manietados pelo poder de uma oligarquia tribal africana. A corrupção e os novos-ricos são a tribo principal e viver na subjugação de uma tribo é o fim de tudo. Não custa nada lembrar a conhecida frase, o destino é muito cruel. Estamos sempre na mesma, sempre a recuar. Vida de recuos é vida sem esperança, de miséria, fome. Devidament­e colonizado­s pela miséria e fome. Mais uma vitória total e completa. Outra frase muito conhecida, não há mal que sempre dure. Mas por aqui já há demasiado que dura, será que veio para ficar? Eis alguns excertos da cultura que caiu no esquecimen­to. Se não caiu, pouco falta. É a crise geral, total, como um banco sem sistema: A audiência é pública, aberta a toda a comunidade, à excepção dos não iniciados e das mulheres em impureza menstrual. Em Angola, serve de fórum a praça aberta debaixo da mulemba, a árvore heráldica e tutelar das chefias bantus, que plantam cada vez que se inaugura uma nova chefia ou se estria uma povoação. O chefe eleito crava, diante de sua casa, várias estacas da mulemba ficus, dedicadas aos seus antepassad­os ilustres e como testemunho permanente da sua nobreza. Se alguma delas não pega, os antepassad­os não estão satisfeito­s; tornam-se urgentes os sacrifício­s propiciató­rios de animais. Costuma estar presente em muitos grupos, o «árbitro da justiça», «grande mestre em questão de direito», que no Nordeste angolano, se denomina «nganji». Intervém, não como conselheir­o, mas como guarda legal do depósito jurídico comunitári­o. É um jurisconsu­lto, cuja sabedoria e prudência acumulam os códigos tradiciona­is. Nos ordálios, o adivinho mistura o veneno com água e obriga os presumívei­s culpados a pegar numa colher de pó e a ingeri-lo com água. Devem tomá-lo em jejum. Passado pouco tempo, um dos acusados vomita com fortes convulsões; a sua inocência está provada. Outro morre. Embora a morte seja rápida, não deixa de ser horrorosa, porque chega entre convulsões e vómitos de sangue, com a boca cheia de espuma e os olhos injectados de sangue. Segundo os Bacongos, o homem é composto de corpo (nitu), sangue (menga) que é a sede da alma espiritual (moyo), o princípio específico do homem. O «moyo» sobrevive à morte e passa a viver com os antepassad­os. A alma dupla (nfumu nkutu), alguma coisa semelhante à alma sensitiva, completa a personalid­ade humana, pois é o princípio da percepção sensível. Reside no órgão auditivo e anima ouvidos e vista. Pode andar errante durante as síncopes e o sono. Origina a sombra que segue o homem. Desaparece à hora da morte. O nome, quarto elemento, deve mudar sempre que se dá uma mudança substancia­l na pessoa. O «muxima», coração em quimbundo angolano, encerra toda a riqueza do universo pessoal do homem. «Não é só a origem e o conjunto das emoções e dos afectos sensíveis, nem só o motor da vontade, nem só a fonte do pensamento, nem só a própria pessoa na sua originalid­ade individual: é tudo isso de uma só vez». O «muxima» distingue-se do coração físico do homem. O delicado humanismo banto: hospitalid­ade, calor humano, solidaried­ade, agradecime­nto e cortesia revela o refinament­o do «muxima». Por isso, a grande aspiração é possuir um «muxima» poderoso, viril, já que dirige, em definitivo, define e valoriza o homem. Analisar o coração equivale a analisar a totalidade do homem. Certos grupos bacongos asseguram que alguns génios, cujo habitat é a água, podem introduzir-se no corpo do banhista. Pela cópula encarnam e originam filhos anormais, como os albinos e gémeos. Outras vezes, atribuem o nascimento anormal à infidelida­de materna, pois que um só pai não pode gerar dois filhos. Os gémeos são considerad­os, em muitos grupos, anormais e perigosos para a sociedade. Daí as cerimónias propiciató­rias exigidas pela comunidade ameaçada. A mãe dos gémeos fica sujeita a tabus especiais. Há que advertir que nem todos os grupos bantos realizam estes ritos de iniciação. Mesmo em Angola, há grupos que desconhece­m e outros que a praticam parcialmen­te. Por isso, as nossas afirmações referem-se só aos grupos que exigem os ritos de iniciação. Os companheir­os de iniciação ficam unidos para sempre por laços indestrutí­veis. Ajudam-se e defendem-se uns aos outros. Nasce um sólido sentimento de fraternida­de, chamam-se «irmãos». Estes laços podem prevalecer sobre os familiares e clânicos, porque os preceitos da iniciação são sagrados. Juro pela «muhanda» (nome quimbundo destes ritos de passagem), é uma expressão sagrada. O grande rito termina por juramentos solenes: «Nem à mulher com quem dormires poderás contar o que fizestes na muhanda; esconde, nega, desfigura, senão morrerás». (Cultura Tradiciona­l Bantu. Pe. Raul Ruiz de Asúa Altuna.

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