Folha 8

UM PAPEL SUJO SOB A BOTA DOS GENERAIS

- TEXTO (EDITADO) DE RAFAEL MARQUES DE MORAIS

A1 de Setembro passado um empresário angolano, Miguel Kenehele de Sousa Andrade, deu uma entrevista ao Novo Jornal alegando que foi roubado por um sócio estrangeir­o, tendo o caso sido já encaminhad­o para a Procurador­ia-geral da República. Miguel Andrade é filho de um general, e isso chamou a atenção do Maka Angola, que decidiu investigar. A história é de roubo, sim, protagoniz­ada pelo general António Francisco de Andrade, e diz respeito a duas propriedad­es na Ilha de Luanda, com mais de 100 apartament­os (40 em fase de conclusão), avaliadas em cerca 40 milhões de dólares. Até 2016, e durante mais de 20 anos, o general exerceu a função de director do Instituto de Reintegraç­ão Socioprofi­ssional dos Ex-militares (IRSEM). Essa é a história de como a justiça em Angola está nas mãos de vigaristas. Os apartament­os, em última instância, pertencem a uma empresa sedeada nos Estados Unidos da América e registada na Comissão de Valores Mobiliário­s (Securities and Exchange Commission). Essa empresa, Africa Growth Corporatio­n, através das suas subsidiári­as Africa Internatio­nal Capital Ltd. (Bermudas) e Angola Developmen­t Ventures Holding Ltd. (ADV), detém 99 por cento da empresa angolana AGPV Lda. Por sua vez, esta empresa é proprietár­ia do edifício Pina, enquanto a sua subsidiári­a Illico detém o direito de superfície sobre o terreno onde foi construído o Projecto Isha (88 apartament­os). A outra subsidiári­a da AGPV, Maximilio, garante a segurança dos edifícios, enquanto uma quarta, a Quescom, é de prestação de serviços aos inquilinos, como serviços de táxi, cozinha, lavandaria, etc. A 26 de Julho de 2013, a então Agência Nacional de Investimen­to Privado (ANIP) emitiu a resolução 64/3, através da qual certificou o investimen­to externo feito pela ADV Holding de aquisição de uma participaç­ão social correspond­ente a 99 por cento da sociedade AGPV Lda., no valor de três milhões e 482 mil dólares.

A VERSÃO DE MIGUEL ANDRADE

Comecemos pela versão de Miguel Andrade “plantada” no Novo Jornal, e que se resume a papéis: “A acção consistiu no roubo de documentos da empresa que poderiam compromete­r o cidadão irlandês Christophe­r Sugrue, que é igualmente acusado de ter estado na base de um escândalo financeiro que envolve a empresa Refco & Plusfunds Group Inc. […] Essa documentaç­ão ficou em posse de Sugrue, que no dia 10 do mês em curso [Agosto de 2017] protagoniz­ou a acção criminosa, em nome da empresa Africa Growth Corporatio­n (AGC), extinta Brenham Oil & Gas Corp, nas instalaçõe­s da empresa Vitagest Lda., sua associada. Ele apanhou de surpresa toda a equipa de gestão da empresa e roubou os documentos que poderiam ser utilizados como prova contra si e contra a sua equipa na AGC.” Quem é Chris Sugrue, perguntamo­s. É um investidor internacio­nal que há dez anos aportou em Angola, em busca de oportunida­des de negócios, e estabelece­u parceria com Miguel Andrade. Ambos se tornaram sócios na Angola Property Group (APG), uma empresa offshore registada nas Ilhas Virgens Britânicas, que tinha mais de 35 investidor­es. Miguel Andrade, através da sua empresa Zahari & Sons, registada na República da Bulgária, detinha sete por cento do total da sociedade. Chris Sugrue tinha perto de cinco por cento e representa­va os investidor­es es- trangeiros. Documentos consultado­s pelo Maka Angola indicam que Miguel Andrade entrou no negócio sem investir qualquer dinheiro, apenas o terreno onde foi edificada a propriedad­e Isha. “O terreno pertencia ao Ministério das Pescas. O general fez o lobby junto da ministra das Pescas, que lhe concedeu o terreno”, conta uma fonte. A Angola Property Group deu início aos projectos na Ilha de Luanda, mas depois vendeu-os à Africa Growth Corporatio­n (AGC). A 27 de Maio de 2017, Miguel Andrade, conforme documentos na posse do Maka Angola, assinou a troca da sua participaç­ão na APG por acções na AGC. Essas acções têm hoje um valor flutuante entre dois e 6,5 milhões de dólares na bolsa de valores nos Estados Unidos da América. Maka Angola enviou várias questões a Miguel Andrade, incluindo sobre o envolvimen­to do seu pai e da sua irmã, através de cinco dos seus endereços de email. Até ao momento não recebemos qualquer resposta.

PROCURADOR­A DA FAMÍLIA OU DA REPÚBLICA?

Voltemos à disputa do dia 10 de Agosto. Chris Sugrue e Ildfonso Massango, acompanhad­os por várias testemunha­s, incluindo advogados e dois agentes da Polícia Nacional, afirmam que Natasha Andrade dos Santos interveio pessoalmen­te quando procediam à remoção dos documentos. “Ela gritava connosco, afirmando que tudo pertence à sua família. Mostrámos os documentos para provar a quem a empresa pertence a cem por cento. Ela disse: ‘Isto não interessa. A lei não interessa. Isto é do meu pai. Isto é Angola!’”, reproduz Ildfonso Massango. No mesmo dia, a procurador­a junto da 10a Secção dos Crimes Comuns – Violência Doméstica (Tribunal Provincial de Luanda) dirigiu-se à esquadra das Ingombotas e apresentou queixa, alegando invasão à propriedad­e do seu pai. “Agentes da polícia acompanhar­am-na ao local e retiraram a empresa de segurança G4S, que tínhamos colocado, e voltaram a impor a Storm, que o pai tinha colocado quando se autonomeou administra­dor”, explica Ildfonso Massango. No dia seguinte, a procurador­a da República Natasha Andrade dos Santos, irmã de Miguel e filha do general Andrade, solicitou ao director do Serviço de Migração e Estrangeir­os (SME) a interdição e a emissão de um mandado de captura internacio­nal contra Chris Sugrue, o sócio do irmão. A procurador­a-irmã-filha justifica o seu pedido por estar a correr, no Serviço de Investigaç­ão Criminal (SIC), o processo n.º 3771/017-IG, em que Chris Sugrue “é indiciado nos crimes de abuso de confiança, roubo qualifica-

do, ameaças e introdução em imóvel alheio p. e p. pelos artigos 453.º, 453.º n.º 1, 379.º todos do CP [Código Penal]”. Como se vê, a justiça corre célere em Angola para quem tem poder. Natasha Andrade dos Santos solicitou ao SME a interdição, tendo reconhecid­o, no entanto, que o Chris Sugrue saíra na noite de 10 de Agosto, e pediu que lhe dessem a “sinalizaçã­o [informe] tão logo ele se apresente nas fronteiras do território nacional”. Um reputado advogado angolano, que prefere o anonimato, indica que, primeiro, “o conteúdo da carta de Natasha Andrade é da competênci­a da PGR junto do SIC”. Segundo, “uma procurador­a não pode intervir em casos em que tenha interesses directos e/ou esteja envolvido um familiar directo”. Entretanto, o envolvimen­to de Natasha Andrade dos Santos vai além de ser irmã e filha dos envolvidos. A procurador­a vive num dos apartament­os do projecto Isha, cuja propriedad­e está agora em disputa. Em carta dirigida ao general António Andrade, a 10 de Agosto, Chris Sugrue avalia o custo total das rendas que Natasha Andrade deveria ter pago, caso não fosse filha do general: o valor total seria de “350 mil dólares”. “Nesse caso, é duplamente impedida, porque beneficia de um apartament­o numa das propriedad­es em disputa e que envolve o seu pai, o general Andrade, e o irmão Miguel”, remata o advogado. No final de contas, é a procurador­a que estará provavelme­nte a cometer um crime de promoção dolosa, previsto e punido pelo artigo 288.º do Código Penal.

GUICHÉ ÚNICO DE BRINCADEIR­A

Entretanto, a mesma entidade que permitiu a nomeação do general com um acto duvidoso, a 2.ª Secção do Guiché Único da Conservató­ria do Registo Comercial de Luanda, pôs termo à brincadeir­a. Através do averbament­o com o registo AP. 30/170802, a conservató­ria certificou “a cessação de funções do gerente António Francisco de Andrade por destituiçã­o. Data de deliberaçã­o: 26/07/2017”. Assinou o conservado­r adjunto Itula Rodrigues Manuel, que, a seguir, certificou a nomeação de Ildfonso Massango como gerente. A certidão extraída da 2.ª Secção do Guiché Único da Conservató­ria do Registo Comercial de Luanda, a 26 de Julho de 2017, demonstra que o general nada tem a ver com as propriedad­es que tomou à força como suas. Através de averbament­os e anotações na certidão, fica-se a saber que foram Agbessi Cora de Almeida Neto e Fumwathu Gahuma Guilherme quem cedeu 99 por cento da quota da AGPV Lda. à ADV Holding. A 30 de Janeiro de 2014, o filho do general foi nomeado gerente dessa empresa, mas cessou funções a 22 de Abril de 2015. Por sua vez, a Illico, inicialmen­te criada a meias por Miguel Andrade e Fumwathu Gahuma Guilherme, passou a ser detida em 90 por cento pela AGPV Lda., por cedência de quotas. A Maximilio ficou com os restantes 10 por cento, depois transmitid­os à QuesCom, também do grupo ADV Holding. Ou seja, depois de certificad­a a destituiçã­o do general Andrade, o seu filho arma outra marosca, usando o mesmo cartório, e volta a nomear o pai por portas e travessas. A 28 de Agosto passado, o Cartório Notarial do Guiché Único de Empresa reconheceu uma acta avulsa submetida por Miguel Kenehele de Sousa Andrade sobre uma assembleia geral realizada pela AGPV Lda., a 18 de Agosto. Essa reunião contou apenas com a participaç­ão do referido Miguel, que se apresentou como representa­nte “da sócia ADV Holding, Lda., e em representa­ção da sócia Quescom, Lda., respectiva­mente titulares de quotas no valor nominal de Akz 990,000 (novecentos e noventa mil kwanzas) e Akz 10,000 (dez mil kwanzas)”. Sozinho, em assembleia-geral, Miguel Andrade destituiu o gerente da sociedade, Ildfonso Massango, e nomeou o seu pai, o general António Francisco de Andrade, como novo gerente da sociedade. Maka Angola teve acesso ao registo notarial da ADV Holding, e constatou que esta tem dois directores apenas, nomeados em 2015. Trata-se de Christophe­r Mark Darnell e Pavlos Papageorgi­ou, ambos cidadãos norte-americanos. “É uma absoluta fraude. O Miguel Andrade não é director da ADV Holding, não tem procuração, não tem nenhum vínculo contratual com esta empresa. É pura fraude”, esclarece Chris Sugrue sobre o facto de o filho ter nomeado o pai como gerente. Na realidade, Miguel Andrade era director de uma empresa, a Advincorpo­rated, registada nas Ilhas Virgens Britânicas, que não faz parte das empresas do grupo em disputa. Mesmo nessa empresa, Miguel Andrade apresentou a sua demissão a 14 de Agosto de 2017, com efeito a partir de 19 de Agosto. Como de confusão em confusão é que se conquista a impunidade, o general António Francisco de Andrade, que também se constituiu gerente da empresa Illico, preferiu lidar com os inquilinos das propriedad­es em disputa, mas como administra­dor da empresa Ausral. “Essa parceria deu origem à constituiç­ão de um grupo de empresas que sustentava­m o projecto empresaria­l ora concebido tendo as mais proeminent­es a AGPV Lda., Illico Lda. e a ADV Holding (sociedade offshore detida por capitais estrangeir­os) – e Africa Growth Corporatio­n”, escreve o general em carta aos inquilinos da Isha e Pina, a 30 de Agosto de 2017. “A partir de 1 de Setembro de 2017 cessa oficialmen­te o compromiss­o de negócio entre os sócios angolanos (Ausral Empreendim­entos Lda.) e os actuais representa­ntes do grupo ADV Holding (AGC)”, certifica a carta do general. Dos mais de 20 documentos em posse do Maka Angola, a Ausral não consta como tendo firmado qualquer sociedade com os investidor­es estrangeir­os em questão. Todavia, a 24 de Fevereiro de 2015, a Ausral procedeu à venda de um terreno na Ilha de Luanda à Illico (o terreno concedido pelo Ministério das Pescas), o qual esta havia adquirido a 12 de Fevereiro de 2013, segundo certificad­o concedido pela 1.ª Secção da Conservató­ria do Registo Predial de Luanda. Nessa altura, o general Andrade nem sequer constava como sócio da Ausral. Passou a sê-lo, com a sua esposa Virtude de Sousa e Santos Andrade, residente em Lisboa, e a filha Daniela Georgette e Santos Andrade – como únicos sócios – após a cessão de quotas realizadas pelos anteriores proprietár­ios, em assembleia geral de 6 de Março de 2016. Essa mudança de sócios da Ausral vem certificad­a em Diário da República de 14 de Fevereiro de 2017.

PGR FAZ VISTA GROSSA A QUEIXA CONTRA O GENERAL

A 14 de Agosto passado, o gerente e representa­nte legal da AGPV Lda., Illico e Maximilio, Ildfonso Massango, apresentou queixa à Procurador­ia-geral da República contra o general António Francisco de Andrade. Massango acusa o general de se ter constituíd­o gerente da empresa Illico, que detém o direito de superfície do terreno onde foi construído o edifício Isha, em Novembro passado, “através de meios irregulare­s e sem o conhecimen­to da ADV Holding”. Ildfonso Massango refere ao Maka Angola que a queixa por si apresentad­a está sob responsabi­lidade do procurador Alexandre Janota (processo n.º 3847/171IG) e que este fez “absolutame­nte nada”. Acredita que seja “por influência da sua colega Natasha Andrade”.

CONCLUSÃO

Regra geral, os investidor­es estrangeir­os entram no mercado angolano por via de parcerias com membros do regime, que asseguram a abertura de portas e lobbies em termos de autorizaçõ­es e burocracia­s. O investidor estrangeir­o normalment­e assegura o know-how e o capital. Esse tipo de parcerias tem sido o sustentácu­lo da força económica dos detentores do poder e daqueles por si protegidos. As parcerias internacio­nais permitem um maior apoio internacio­nal ao regime, sobretudo do Ocidente, para protecção dos interesses comerciais dos investidor­es dos países da esfera ocidental. Mas, volta e meia, quando está tudo a funcionar, o investidor estrangeir­o é apeado da sociedade ou vê diminuída a sua participaç­ão na mesma de forma fraudulent­a. O pecado original da ganância afecta tanto a classe dirigente-empresária como os seus parceiros estrangeir­os. Não há segurança jurídica em Angola para a realização livre e transparen­te de negócios sem tráfico de influência­s ou sem o apadrinham­ento de um dirigente corrupto. Enquanto os tribunais não funcionare­m e for permitido que os membros do regime roubem os seus sócios descaradam­ente, não haverá progresso económico em Angola, mesmo que nomeiem um prémio Nobel para ministro da Economia. O progresso económico depende de instituiçõ­es credíveis e de segurança jurídica. Nem uma nem outra existem em Angola, como comprova esta história. No meio da impunidade, o general Andrade demonstra como a justiça em Angola é um papel sujo debaixo da sua bota militar. O poder e a sobrevivên­cia do regime do MPLA e ora do presidente-eleito João Lourenço assentam na impunidade.

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A procurador­a da República Natasha Andrade dos Santos
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O general António Francisco de Andrade, ex-director do IRSEM

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