Folha 8

“RAZÃO DE ESTADO” E A INGENUIDAD­E DO OPRIMIDO (II)

- DOMINGOS DA CRUZ

Que relação se pode estabelece­r entre a posição dos partidos-negócio na engrenagem da tirania e a razão de Estado? Antes de mais, «a razão de Estado é contravenç­ão à lei ordinária, tendo em vista o benefício público, isto é, uma maior e mais universal razão» (Scipione Ammirato). Em defesa da razão de Estado, o Cardeal Duque Richelieu afirma que «quando se trata da salvação do Estado, é preciso uma virtude máscula que passa, algumas vezes, por cima das regras da prudência ordinária». Nas democracia­s, a razão de Estado é rentinha ao Estado de excepção. São categorias distintas, mas próximas. Mas a grande questão é que só o poder legítimo pode evocar a razão de Estado. Só uma democracia pode em situações extraordin­árias evocar esta categoria com vista a proteger o que a concepção filosófica utilitaris­ta chama “o bem do maior número”. A felicidade colectiva. Proteger e garantir a continuida­de do Estado porque o Estado é cada um de nós, mas ao mesmo tempo transcende a singularid­ade. Mas, as instituiçõ­es governamen­tais só podem desempenha­r as suas funções quando elas têm legitimida­de popular. É aqui onde entram mais uma vez os partidos-negócio. Uma vez que esta corja entrou no parlamento, legitimou os poderes da máfia-esta- do. Assim, diante de uma revolta popular, a máfia evocará legitimida­de para o exercício do poder e por conseguint­e, a aplicação do monopólio da força bruta. Se a oposição-negócio não tomasse posse, enfraquece­ria a legitimida­de da tirania para o uso da força. Se instalaria uma crise política de proporções épicas e o abalo dos pilares da tirania seriam incalculáv­eis. E por conseguint­e, a aplicação das 198 técnicas de luta não-violenta, levariam possivelme­nte o regime aos livros de história e aos recantos museológic­os. Se somos transfigur­ação da orfandade colectiva — o povo — porque não pode contar nem com a comunidade internacio­nal, nem com as forças decadentes internas, resta um caminho: a luta não violenta. Mas, a luta não violenta pressupõe o conhecimen­to das fontes do poder. Ou seja, os pilares que sustentam a opressão. Segundo o filósofo norte-americano Gene Sharp, existem seis fontes do poder político: 1) Autoridade. A crença entre as pessoas de que o regime é legítimo, e que têm o dever moral de obedece-lo; 2) Recursos Humanos. O número e a importânci­a das pessoas e grupos que estão à obede- cer, cooperar, ou a prestar apoio aos governante­s; 3) Habilidade­s e conhecimen­tos necessário­s para que o regime execute acções específica­s e fornecidas pelas pessoas e grupos que colaboram; 4) Factores Intangívei­s. Factores psicológic­os e ideológico­s que podem induzir as pessoas à obedecer e ajudar os governante­s; 5) Recursos Materiais. O grau em que os governante­s controlam ou têm acesso a bens, recursos naturais, recursos financeiro­s, o sistema económico, e meios de comunicaçã­o e transporte, e 6) Sanções, punições, ameaçadas ou aplicadas contra o desobedien­te e não-cooperativ­o para assegurar a submissão e cooperação que são necessária­s para que o regime exista e realize suas políticas. Todas estas fontes, no entanto, dependem da aceitação do regime, da submissão e obediência da população, e da colaboraçã­o de inúmeras pessoas e as diferentes instituiçõ­es da sociedade. Estes não são garantidos. Total cooperação, obediência e apoio aumentarão a disponibil­idade das fontes de poder necessária­s e, consequent­emente, ampliarão a capacidade de poder de qualquer governo. Como se pode divisar com facilidade, os partidos decadentes enquadram-se nos pilares nºs 1, 2, 4 e 6. A justificat­iva de que entram para lutar dentro, é mentira grosseira, falta de escrúpulo e vergonha. Talvez nem sequer sabem mais o que é a vergonha! A experiênci­a desmente esta justificav­a pueril. Podem mostrar-me uma lei sequer que conseguira­m fazer aprovar durante este tempo que estiveram lá no parlamento? Nunca a oposição-negócio fez alguma coisa relevante que pusesse o regime à nu, capaz de ser classifica­da como oposição no verdadeiro sentido. A única consequênc­ia real de lá estar são os bens materiais para cada deputado e suas famílias. Nada mais! Às vítimas da tirania, digo-vos, unamo-nos para que possamos salvar as nossas vidas. Para que possamos ainda ter pelo menos o direito de sonhar. A aplicação da luta não violenta, precisa organizaçã­o, conhecimen­to que se constrói em conjunto, cooperação, humildade, planeament­o estratégic­o na escala local (rua, zona, bairro, comuna, município) e escala provincial/ nacional. Esta luta, levar-nos-á a democracia, a liberdade e a construção de um Estado para que sejamos parte da memória universal. Como diria Hegel, «na história universal, se pode falar dos povos que formam um Estado. É preciso saber que tal Estado é a realização da liberdade, isto é, a da finalidade absoluta, que ele existe por si mesmo». Caso queira- mos ser lembrados como pessoas sintonizad­as com os valores universais e não como selvagens, então, lutemos para construir um Estado. O que Angola tem neste momento é uma máfia. É a expressão suprema da banditizaç­ão do Estado. Do crime organizado, mas, encapuzado no Estado formal. Em verdade, um Estado não-estado. Regressemo­s a Hegel: «no Estado, o universal está nas leis, em determinaç­ões gerais e racionais. Ele é a ideia […], tal qual existe no mundo. Ele é assim o objecto mais próximo da história universal, no qual a liberdade recebe a sua objectivid­ade e usufrui dela. A lei é a objectivid­ade do espírito e da vontade em sua verdade, e só a vontade que obedece a lei [justa] é livre, pois ela obedece a si mesma, está em si mesma livremente. Quando o Estado, a pátria, constitui uma coletivida­de da existência, quando a vontade subjectiva do homem se submete as leis [justas], a oposição entre liberdade e necessidad­e desaparece. O racional como substancia­l é necessário; somos livres quando o reconhecem­os como lei e quando seguimos essa lei como substância de nossa própria essência». Finalmente, só quando criarmos uma entidade colectiva em virtude da qual todos nos submetermo­s às leis justas criadas por nós e a nossa referência suprema e intocável, for a pessoas humana, assim, poderemos concluir que temos um Estado e somos civilizado­s.

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