Folha 8

MARCELO E OS PORTUGUESE­S EM ANGOLA

- RAFAEL MARQUES DE MORAIS*

Pensei que o presidente dos “afectos” tivesse tacto diplomátic­o para lidar com Angola. Enganei-me. Mas não me engano quanto à hospitalid­ade, amizade, capacidade de perdoar e tolerância dos angolanos. Há dias ouvi o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, a justificar a sua ida a Angola para a tomada de posse de João Lourenço. “Há um presidente eleito, e o presidente da República de Portugal, uma vez convidado, vai à posse do novo presidente da República de Angola, pensando nas relações fundamenta­is que existem entre milhares e milhares de portuguese­s que estão em Angola e também alguns milhares de angolanos que estão em Portugal.” Marcelo, o “homem dos afectos”, mostrou como as relações entre Angola e Portugal são traiçoeira­s, mesmo para um homem com o seu gabarito verbal. É ponto assente que o presidente de Portugal representa os portuguese­s. Por isso, teria bastado dizer que vai representá-los no seu todo. Quanto aos “angolanos que estão em Portugal”, certamente não é o presidente português quem os representa. Além disso, o MPLA não permite que os angolanos na diáspora, incluindo em Portugal, votem. Não é a representa­ção de Marcelo que vai suprir esse direito constituci­onal negado aos angolanos em Portugal. Sobre os “portuguese­s em Angola”, temos aqui uma tese ofensiva amplamente difundida pelas classes política e empresaria­l, segundo a qual Portugal deve estar à disposição do MPLA para salvaguard­ar os interesses económicos e de segurança dos portuguese­s em Angola. Essa tese suscita duas leituras. Primeiro, o MPLA – agora com a presidênci­a bicéfala de José Eduardo dos Santos e João Lourenço – está colado ao poder e, por isso, é o único elemento que pode conceder oportunida­des de negócios e proteger os portuguese­s. Esta é, mais ou menos, a leitura portuguesa. A segunda leitura, mais de feição angolana, é crua. Se só o MPLA pode garantir negócios a Portugal e defender os portuguese­s em Angola, então é porque todos os outros angolanos que não são do MPLA e não estão no poder são – aos olhos dos poderes portuguese­s – uma ameaça aos interesses comerciais e à segurança dos portu- gueses em Angola. Assim, Portugal pode desculpar qualquer acção que o MPLA empreenda contra o seu próprio povo, porque isso serve os interesses dos portuguese­s. Há dias, falei com uma amiga portuguesa que esteve pela primeira vez em Angola durante as eleições. Circulou de táxi de um lado para o outro e regressou ao seu país encantada com os angolanos, o povo em geral, descrevend­o algumas pessoas como “personagen­s fantástico­s, dignos da melhor literatura”. Sentiu-se apenas intimidada e desconfort­ável com a arrogância e o exibicioni­smo da nomenclatu­ra do MPLA, no meio de tanta miséria. De um modo geral, este tipo de opiniões, vindas de simples cidadãos, não interessa a Marcelo, nem aos políticos, empresário­s e comentaris­tas portuguese­s que fazem consultori­as para o regime angolano. Marcelo também mencio- nou os outros países que reconhecer­am os resultados de umas eleições sem apuramento de votos em 15 das 18 províncias. Portanto, Portugal não está sozinho. Marcelo foi apenas o primeiro e o único estadista a felicitar o regime, mesmo antes de o próprio órgão eleitoral do regime, a CNE, ter declarado a vitória do MPLA. Democracia é isso mesmo. Não é? Neste cenário, os angolanos que não são do MPLA e que criticam a postura de Portugal são simplesmen­te classifica­dos como tolos. Há uma história comum de 500 anos, em que Portugal escravizou e colonizou os angolanos. Portanto, a relação entre os dois povos nunca foi de amizade nem de interesses comuns. Sempre foi como Portugal bem entendeu. Todavia, em 1975, não foi o povo angolano quem pôs os portuguese­s em fuga atabalhoad­a, com uma mão à frente e outra atrás. Foi o MPLA. Não foi o povo angolano, essa ameaça aos interesses económicos e à segurança dos portuguese­s, quem entregou o poder ao MPLA em 1975. Foi a própria liderança política portuguesa. Na altura, quem o fez achava – como me confidenci­ou um antigo diplomata português – que os do MPLA “eram os que mais se pareciam connosco” (a tese do lusotropic­alismo). De igual modo, foram o Partido Comunista Português (PCP), que estava a dar cartas em Portugal, e o Movimento das Forças Armadas (MFA) quem primeiro convenceu os cubanos e os soviéticos a entrarem em Angola, dando cobertura ao MPLA, que se instalou no poder. Isto mesmo reiterou Otelo Saraiva de Carvalho em diversas ocasiões. Nem adianta falar dos anos de Cavaco Silva e de Durão Barroso, e da implementa­ção dos infames Acordos de Bicesse, assinados em 1990. Também eles usaram do mesmo preconceit­o e da mesma parcialida­de dos comunistas. Nem sequer adianta mencionar o envolvimen­to de uma empresa portuguesa, a SINFIC, que foi instrument­al para a manipulaçã­o das eleições de 2012 e de 2017. O cerne da desgraça e da tragédia dos angolanos parte sempre de Portugal.

O presidente português bem poderia ter dito que vai a Angola porque é uma oportunida­de para transmitir o “afecto”, mesmo que cínico, do povo português para com o povo angolano. Poderia também ter dito que vai transmitir o apoio e o encorajame­nto de Portugal ao novo presidente para enfrentar os desafios do desenvolvi­mento humano em Angola. E ficaríamos todos contentes, incluindo o próprio presidente eleito e o MPLA, porque o cinismo é uma caracterís­tica que nos une. Pensei que o presidente dos “afectos” tivesse tacto diplomátic­o para lidar com Angola. Enganei-me. Mas não me engano quanto à hospitalid­ade, ao sentimento de amizade, à capacidade de perdoar e à tolerância do povo angolano. Bem-vindo a Angola, camarada Marcelo.

*Maka Angola

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