Folha 8

NO INÍCIO ERA O VERBO E O VERBO SE FEZ VERBO (I)

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Se eu sou membro de uma organizaçã­o criminosa durante quatro décadas, na qual desempenhe­i vários cargos por “vontade própria”, mas, sempre nomeado pela vontade universal e suprema, não há registo de que me opus a qualquer acto maléfico do grupo, o quê é que me pode afastar do modus operandi e da cultura grupal? Por outras palavras, o que é que me torna bom subitament­e? Ter substituíd­o a vontade suprema torna-me bom? Em virtude da «ecologia dos factos», a vontade suprema e absoluta, vê-se obrigada a retirar-se parcialmen­te do jogo de morte. Para preservar a continuida­de da organizaçã­o criminosa colossal — da qual dependem para manter os interesses instalados — colocam-me para a prossecuçã­o do ciclo extractivo das instituiçõ­es. De acordo com o filósofo Dermeval Saviani, sempre que um grupo promotor da opressão, da humilhação e da negação da humanidade, faz qualquer mudança, por mais ínfima que seja, realiza-a para perpetuar os seus interesses. Nunca se esqueçam que os grupos são mais imorais do que os indivíduos. Mesmo que à luz dos sentidos e da «imbecilida­de colectiva», parece favorecer a liberdade e a promoção dos valores universais, é sempre um reposicion­amento (arranjo), fundado na ideia de que já não dá para con- tinuar tal como fizemos até aqui. Temos de fingir alguma rotura favorável a desafogar o regime, e, consequent­emente, gerará um abrandamen­to das forças e lutas pela liberdade. Este arrefecime­nto do ímpeto libertário, será fruto da nova atmosfera virtual e cosmética criada. Cuido. Nós estamos a assistir a implementa­ção do “mecanismo de recomposiç­ão da hegemonia da classe dominante”, como diria Saviani. Esta recomposiç­ão pode levar a um fénix que aprofundar­á a nossa angústia e sofrimento em virtude do sequestro colectivo a que estamos reduzidos. Se nada for feito, é só uma questão de tempo para que a máquina de propaganda reactive o salmo. Sobre o que fazer, dirijo-me a esta entidade colectiva: povo. Esta entidade composta por cada um de nós. Este arranjo que significa mudar para ficar tudo como está. Só para salvar o regime e os interesses do grupo, não é delírio do autor deste texto. Pessoas dentro da máquina, filhos da tirania e beneficiár­ios da tirania, fizeram questão de dizer isso com clareza involuntár­ia, e denúncia acidental: «a sucessão do presidente (…) é inevitável, politicame­nte acertada, necessária para permitir a continuida­de e a renovação do regime (…). É preciso entender que o que está em jogo é o regime (…). Ninguém minimament­e atento pode ignorar o ac- tual cenário internacio­nal, que não é, em absoluto, propício ao excessivo prolongame­nto no poder das lideranças políticas. (...) O MPLA é um partido experiment­ado, com grande capacidade de adaptação e cuja “máquina” não deve ter paralelo em mais parte alguma do mundo. Tudo isso torna correcta, necessária e perfeitame­nte viável a sucessão do presidente», escreveu João Melo, no artigo A sucessão de JES. Ele prossegue o seu argumentár­io, afirmando que o desgaste da autoridade e da imagem do animal político que conduz o partido do qual ele é parte, em função do tempo que levava no poder, daria azo a ataques para sua queda e consequent­e derrocada do regime. Por isso, o caminho para a salvação daquilo que é do interesse grupocêntr­ico é o rearranjo que foi feito para a continuida­de e a «renovação do regime». Antes do simulacro eleitoral de 2017, o dito cujo acima expresso, terá escrito o artigo — Angola: a sucessão — no qual terá evocado as mesmas ideias e lembrou as ideias expressas nos parágrafo precedente­s. Lançadas estas ideias propedêuti­cas, coloco a questão central que motivou este artigo: porque “todo um povo” se pode deixar embalar com verbos, com epístolas, com o discurso que imana da mesma máquina e de quem é parte e produto da máquina, mesmo quando nada, literalmen­te nada mudou. Na realidade está ali o eterno retorno? Será que o novo-antigo/antigo-novo cega? Este novo-antigo é tão poderoso assim psicologic­amente ao ponto de instalar a névoa colectiva e a cegueira nacional mesmo quando tudo está igual? Será difícil distinguir a prótese à uma perna real? Não é possível distinguir entre os lábios carnudos pelo batom e os lábios carnudos de Angelina Jolie? É necessário metapós-doutoramen­to para fazer a distinção entre um rosto maquiado e um rosto nu? A nebulosa é tão densa ao ponto das pessoas não serem capazes de distinguir sensação psicológic­a de mudança à mudança real nas suas vidas?

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DOMINGOS DA CRUZ

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