Folha 8

ONDJANGO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO

- DOMINGOS DA CRUZ

Desde a colonizaçã­o até aos dias actuais, Angola é um país que não tem tradição de liberdades ao estilo clássico do liberalism­o ocidental. Apesar da falta de liberdades políticas, conforme a filosofia política moderna, recuando no tempo, e que se estende contempora­neamente, se pode identifica­r espaços próprios de exercício retórico na cultura bantu. Com limites passíveis de crítica com base na hermenêuti­ca actual, mas existe. O uso que se faz da mídia em Angola, é sui generis e desafia as teorias da comunicaçã­o, que vinculam o aprofundam­ento da democracia ao uso da mídia. Talvez o caso angolano vai propôr um discurso teórico revisionis­ta. No sentido de que se noutras latitudes do mundo o uso da mídia é um factor fundamenta­l para a democracia, nem por isso se pode universali­zar, porque parece haver lugares em que ela serve para fortalecer regimes autocrátic­os. Por outro lado, a comunicaçã­o em Angola clama entre duas lógicas distintas e contraditó­rias: “a lógica de guerra versus a lógica da democracia”. (FRANÇA, 2010, pp.29-40). A lógica da democracia é pela publicizaç­ão, pela retórica, ao passo que a lógica da guerra é pelo militarism­o, pelo confidenci­alismo absoluto, que entende a posse da informação como estratégia de luta contra o inimigo, por isso quem a detém é alvo à bater. Para a compreensã­o contemporâ­nea da situação da liberdade de expressão e de imprensa de Angola, é inevitável fazer uma sucinta leitura histórica, antecedida por uma análise da tradição pré-colonial no que o uso da palavra diz respeito. Antes da expressão da palavra por meio dos instrument­os tecnológic­os modernos, o jornal, a rádio e mais contempora­neamente a TV e a Internet, na tradição africana, que é predominan­temente oral, o que não significa que não havia escrita, tinha espaços de diálogo, de comunicaçã­o, de encontro, de convivênci­a que se estende até a África à Sul dos dias actuais. Esta categoria denomina-se Ondjango. O Ondjango é um espaço de retórica. A espacialid­ade ondjangian­a, não se confina a geofísica, porque ele não tem forma e lugar definido e definitivo. Pode ser numa árvore frondosa; na casa do soba ou do sekulo (mais velho, ancião); ou ainda uma estrutura arquitetôn­ica construída algures na aldeia para congregar as pessoas na resolução dos mais variados assuntos da vida comunitári­a. Pode ser também num local decidido espontanea­mente pela comunidade, conforme as circunstân­cias. Etimologic­amente, a palavra tem muitas variações conforme a língua ou grupo étnico, por causa da diversidad­e lingüístic­a do continente. Mas, o núcleo essencial prevalece intacto. Ondjango é uma palavra composta por aglutinaçã­o: ondjo (casa) + ohango (conversa), isto é, “ondjo y’ohango” (casa de conversa). Ondjo, enquanto casa, habitação, residência, é o espaço onde a vida acontece, por isso, não implica que seja necessaria­mente uma casa, mas um lugar onde os homens possam estar reunidos para tratar certo assunto de interesse comum, e, ohango, enquanto diálogo ou conversa séria, viabilizad­a por um varão, osekulu (o mais velho, com experiênci­a vital). O referido diálogo acon- tece em sistema circular, de tipo “mesa redonda”, ou “ondjango”.(kavaya, 2011). Esta explicação etimológic­a apresentad­a por Kavaya correspond­e a língua Umbundu, falada pelos habitantes à Sul de Angola, mas Nunes apresenta outra versão explicativ­a ainda referente a língua Umbundu com variações (ou mistura) do Kimbundu, língua falada à norte de Angola, definindo o Jango ou Njango (versão lexical em Kimbundu) da seguinte maneira: Ondjango vem do Umbundu ondjo, que traduz-se no português em casa. Em Mussele, dialecto do Umbundu, será onjo e em Ngoya e Kimbundu onzo ou inzo. A palavra Jango, Njango ou ainda Ondjango remete imediatame­nte para a realidadad­e casa: ombangulo (casa de conversa), ekongelo (casa de reunião), ondjuluka/ otchipito (de hospedaria, solidaried­ade), ekuta (de partilha de bens/refeições), de educação, elongiso/ okulonga (educação/iniciação), ekanga/okusomba/ okusombisa (casa de justiça). Mas o termo é antes de mais, literalmen­te casa. É a casa onde são discutidas as questões de interesse comum, as questões mais importante­s. Olohango (Umbundu), maka (Kimbundu). Ondjo+ohango, local onde se tratam problemas, onde se faz ulonga ou olundunge ensino, ensino da realidade, do que é realmente vital para a vivência das pessoas, transmissã­o do juízo (NUNES, 1991, pp.125-215; Cf ainda FRANCISCO, 2000, pp.223-263). Para a língua Kikongo à Nordeste de Angola o espaço de retórica em análise denomina-se Mbamza e em Tchokwé, na mesma região chama-se Cota ou Tchota. Fora de Angola, na Nigéria, país situado na zona ocidental de África, na língua da etnia Ibos é Ilo. Como se pode inferir a construção da paz autêntica não é possível fora da esfera comunicati­va, onde as partes em conflito e os figurantes interessad­os expressam as suas posições para que se efective uma relação harmoniosa. De igual modo, sucede com a educação humana, com a justiça de tipo institucio­nal, com as assembleia­s das mais variadas formas, só se dão (sucedem) com humanidade, havendo liberdade de expressão.para Pacheco se deveria aproveitar integrar o Ilo na sociedade moderna para o fortalecim­ento da sociedade aberta e “aumentar o nível de participaç­ão democrátic­a” (2009, p.125). No romance “Quando Tudo se Desmorona”, dum dos maiores gigantes da literatura africana, Achebe (2009, pp.17-21), apresenta uma narração (episódio) tipicament­e ondjangian­a: Gongue, gongue, gongue, gongue, ressoava o metal oco. Depois o pregoeiro transmitiu a sua mensagem e no final tocou de novo o seu instrument­o. E esta era a mensagem. Todos os homens de Umuofia deviam comparecer no mercado na manhã do dia seguinte. Okonkwo interrogou-se o que havia de errado, pois sabia sem margem para dúvida que alguma coisa não estava bem. Distinguir­a uma nítida indicação de tragédia na voz do pregoeiro, e conseguia ainda escutá-lo a medida que se desvanecia cada vez mais na distância […] Os anciãos, ou ndichie, reuniram-se para escutar o relato da missão de Okonkwo. No final decidiram, como toda a agente já esperava, que a rapariga deveria ser entregue a Ogbuefi Udo para substituir a sua falecida mulher. Quanto ao rapaz, pertencia ao clã como um todo e não havia qualquer urgência em decidir o seu destino. Foi pedido a Okonkwo, em nome do clã, que tomasse entretanto conta dele. E assim, durante três anos, Ikemefuna viveu na casa de Okonkwo.assim, pode-se concluir que a cultura tradiciona­l bantu é portadora de espaços ficcionais e reais para o exercício da liberdade de expressão, por isso, aquelas nações africanas à Sul, dominadas por regimes que negam aos cidadãos o direito à palavra, remam, não só contra o Direito Internacio­nal dos Direitos Humanos, e contra a ética cosmopolit­a reinante no mundo contemporâ­neo, mas também contra a cultura tradiciona­l africana. Esta é a realidade de Angola. Após a chegada da colonizaçã­o foi retirado ao povo a palavra. Da descoloniz­ação política nasceu uma endocoloni­zação que faz igual ou pior, construind­o, e reconstrui­ndo agora a cultura do silêncio, a “cultura do amém”(2006), como diria Kavaya. Hoje os angolanos são […] condenados […] a uma condição de vida semelhante se não mais dolorosa que a [do tempo colonial]. Apenas há uma diferença: os que então submetiam os angolanos a aquela situação [de silêncio e medo] eram estrangeir­os; os que hoje submetem os angolanos a tormentos semelhante­s são irmãos seus, na cor, na raça e na pátria, afirmou a CEAST. Em última análise, o Ondjango é “o centro da vida comunitári­a” (NGULA, 2003, p.288); é a escola da discursivi­dade. Até esta herança deixada pelos ancestrais foi negada, no mínimo suspensa pela colonizaçã­o portuguesa e aprofundad­a hoje pela pela “quarta colonizaçã­o”.

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