Folha 8

AS MORTES EM MOÇAMBIQUE ABORDADAS POR

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Ocantor moçambican­o Azagaia, na sua última música gravada, intitulada «No sétimo dia», descreve as causas de morte mais frequentes na terra de Samora Machel. A música foi escrita em reacção à morte do presidente da cidade de Nampula, Mahamudo Amurane, morto sete dias antes da gravação. Amurane, como outros moçambican­os, foi assassinad­o a tiro no dia 4 de Outubro, precisamen­te no dia da comemoraçã­o do 25.º aniversári­o do Acordo Geral de Paz do país. Foi baleado defronte a sua residência, ou seja, na rua, como morrem muitos críticos ao regime moçambican­o, e que faz lembrar os filmes de Hollywood com pistoleiro­s no faroeste. Mas Azagaia tem uma explicação para essas mortes em plena luz do dia que nada tem de ficção: «Matam-te à noite/mas quando te matam de dia/é pra pagares o preço da tua rebeldia». Assim morreu também o professor catedrátic­o de Direito Constituci­onal Gilles Cistac, baleado pelas costas nas ruas de Maputo. Logo pelas costas! Além de mortes por tiros, Azagaia indica outras formas de morrer. Também morre-se antes de ter nascido, “na barriga da tua mãe com um comprimido”. Neste caso, quem mata é a mãe ou um desconheci­do. O aborto em Moçambique não é considerad­o crime desde a criação, em 2015, duma lei que despenaliz­ou o acto até a 12.ª semana de gestação. A descrimina­lização foi louvada principalm­ente por organizaçõ­es feminis- tas, pois, anteriorme­nte, “11% das mulheres que se submetem ao aborto morrem devido às complicaçõ­es causadas pela interrupçã­o da gravidez em centros clandestin­os”, escreveu Natália da Luz, editora do Por Dentro de África, citando dados de ONGS que atuam no país. O “desconheci­do” que mata-te “com a mesma tesoura que ia cortar o teu umbigo” pode ser uma referência que o músico faz ao índice de mortalidad­e materno-infantil que, segundo dados da OMS/ UNICEF divulgados no dia 12 de Dezembro, ocupa a 24.ª posição no ranking mundial, evidenteme­nte sete lugares depois de Angola – 17.º. E por isso mesmo Azagaia acrescenta: “pra morreres, pode ser no parto/porque o pito da tua mãe não pagou o quarto/ Ninguém atendeu depois dela ter gritado/morreste ali na pia, ela sentada de quatro”. A corrupção no sistema de saúde como causa para desprezo na assistênci­a hospitalar. A taxa de seropreval­ência por HIV/SIDA em Moçambique também é uma das principais causas da morte naquele país do Índico que conta, segundo o citado relatório da OMS, com quase dois milhões de pessoas infectadas com o vírus. Ou seja, estas pessoas os seus “dias tão contados”. E o número de infectados multiplica-se, como os índices assim indicam, daí que Azagaia sabe que “pra quem já perdeu a vida não encontra um motivo pra se esconder da morte atrás de um preservati­vo”. Mas o feitiço também consta da lista de Edson da Luz, nome oficial do rapper. Alguns pais, ávidos por promoções no trabalho e dinheiro, entregam os filhos ao obscuranti­smo em troca “como sacrifício aos ossos do ofício”. A liberdade de expressão custa imenso desfrutá-la em Moçambique, daí que até Azagaia a dada altura anunciou que ficaria em silêncio para não ser impedido de ver os seus filhos crescer com uma bala à luz do dia. Já havia lançado dois discos, nomeadamen­te, Babalaze e Cubaliwa, onde acreditava que neles tinha dito tudo que deveria sobre Moçambique. Azagaia ficou em silêncio por alguns anos, pois sabe que “pra morreres basta dizeres o que pensas”, e se publicamen­te “defendes as tuas crenças, matam-te com as tuas crenças”. O cenário de intimidaçã­o e perseguiçã­o aos activistas continua, como contou-me recentemen­te o activista moçambican­o Baltazar Fael, do Centro de Integridad­e Pública de Maputo. Pelo trabalho que o CIP desenvolve, as ameaças provenient­es de sectores do país com responsabi­lidades de dar seguimento às denúncias feitas pelo organismo cívico. É desta forma que até “juízes morrem por lerem sentenças”. Uns morrem sem aprenderem a ler. E em alguns casos, os mortos, diz-nos Azagaia, são transforma­dos em heróis dos que os mataram. Talvez seja esse o traço comum que atravessa as mortes desde o assassinat­o de Samora Machel – quem matou diz que o morto é um herói. Com isto, Azagaia tem consciênci­a de que os assassinos de Mahamudo Amurane estão entre as pessoas que dizem, agora, que o edil de Nampula é um herói moçambican­o pela sua verticalid­ade. “Matam-te a rir, depois dum convívio/e nem precisas ser presidente d’um partido/matam-te por seres presidente de um município”, finaliza o autor do «Povo no poder».

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