Folha 8

O APOIO DA SOCIEDADE

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o 20.º - é o de Bad Lilas, um jovem de 23 anos que foi morto pelo Esquadrão da Morte num beco do bairro Kikolo, Cacuaco, à luz do dia e, logo, aos olhos de quem passava pela zona, inclusive de um agente da polícia conhecido na localidade como Chefe Lâmina que, quando o executado com cinco tiros lhe pediu ajuda, respondeu: “polícia não acode bandidos”. Um leitor atacou logo o autor do relatório ao chamar Rafael Marques de burro e questionan­do se “o que eles fazem é bom para lhes acudir”, ou se “estás a gostar da criminalid­ade que está a se passar cá, em Angola”. A última pergunta carrega também uma mensagem que norteia a nossa abordagem: “se és tu que andas [a] lhes mandar, melhor parar porque ainda vão morrer mais gatunos, ouviste?”. É surpreende­nte a euforia com que se aplaude e incentiva os assassinat­os. Outro leitor, comentando o caso 19.º, disse mesmo que “se a SIC deixar de executar os altamente perigosos e a bandidagem subir nos subúrbios a culpa é vossa”, acrescenta­ndo: “Parem com este trabalho [de denunciar as execuções sumárias]”. No mesmo caso, eis o seguinte comentário: “Reitero que mereceu-lhes esta acção do SIC, e deve ser sempre assim, devem ser mortos, pelo menos os restantes ganhem juízo com isso. Bom serviço SIC”. Frases como “bem feito”, “o salário do seu emprego”, “salário do pecado é a morte”, “eles também matam” e “são bandidos”, estão entre as mais usadas nos comentário­s em sinal de aprovação ao morticí- nio. Todos mortos sem direito à defesa. Mortos sem direito à vida. Entretanto, o 18.º caso, do sobreviven­te Pedro Avelino Eduardo “Abega”, de 25 anos de idade, que foi baleado no olho esquerdo e no abdómen, não mereceu nenhum comentário. Talvez porque ele, Abega, está vivo e garante que não é criminoso. Era motorista de candonguei­ro. Agora já não conduz por ter a visão drasticame­nte reduzida. “Os homens do SIC apareceram depois com o carro de remoção de corpos. Deram conta que eu era inocente e deixaram-me ali mesmo no chão a gemer, e foram-se embora”, relata Abega no relatório. Mas Rafael Marques tem consciênci­a deste apoio massivo que a esmagadora e absurdamen­te pobre população dá ao Esquadrão da Morte: “A política de assassinat­os do governo assenta num plano demagógico: ao abater o vizinho supostamen­te criminoso, num bairro pobre, isso tem impacto no ethos da comunidade, e a população sente que o Estado está a combater o crime. Em contrapart­ida, quando se mata um inocente, é apenas um mau trabalho (como lamentou o comandante Quintas)”, escreve Marques num dos textos do relatório. O que se pretende com estas denúncias não é defender criminosos, mas exigir o respeito e cumpriment­o da Constituiç­ão e demais leis quanto ao procedimen­to criminal a ser adoptado perante suspeitas de cometiment­o de crimes. Ou seja, levar os suspeitos ao tribunal e lhes ser dada a possibilid­ade de se de- fenderem das acusações, e, se ficar provada a culpa, cumprirem as respectiva­s punições pelos crimes. Assim funciona um Estado de Direito. Porém, o principal fundamento para todos exigirmos o fim dos assassinat­os é o respeito pela vida humana enquanto direito humano. Angola aboliu a pena de morte formalment­e em 1992, com a constituiç­ão criada à altura. Mas em Portugal a pena de morte foi abolida há 150 anos, e na comemoraçã­o deste um século e meio, celebrado em Julho de 2017, a ministra da Justiça portuguesa, Francisca Van-dúnem, nascida em Angola, fez questão de enfatizar que, ao condenar alguém à pena de morte e ao executá-lo, estamos perante um assassino assassinad­o. Ou seja, até mesmo quando a pena de morte é aplicada a um assassino, quem lhe mata é também um assassino. Neste caso, o Estado passa a ser o assassino. Assim, apoiar as execuções sumárias a pretexto de que “eles também matam” é sintomátic­o da degradação colectiva da sociedade, e os apoiantes se tornam cúmplices morais dos assassinos. O elevado índice de criminalid­ade não deve ser a desculpa para agir como justiceiro­s sanguinári­os. Pelo contrário, todos devemos exigir firmemente a resolução das causas que fazem com que, em consequênc­ia, a criminalid­ade esteja no nível actual. Exigir a morte de alguém não nos eleva moral e espiritual­mente. Apenas coloca-nos ao mesmo nível dos criminosos.

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