Folha 8

NOTA SOBRE O REGIME DE REPATRIAME­NTO DE CAPITAIS: UMA AMNISTIA TÉPIDA

- TEXTO DE RUI VERDE

Se o famoso discurso de João Lourenço sobre o repatriame­nto de capitais se reconduz à proposta de lei elaborada pelo Banco Nacional de Angola, que aprova o regime especial de regulariza­ção tributária, é caso para usar a velha expressão “a montanha pariu um rato”, ou melhor, um ratinho tépido. Lemos com atenção e espírito construtiv­o a referida proposta, mas, a não ser que esta seja complement­ada por um pacote legislativ­o sério, em si mesma esta nova lei não passa de uma simpática lei de amnistia. Mais uma… A primeira questão da lei é simbólica. Trata-se de uma lei que parece uma imitação dos famosos Regimes de Regulariza­ção Tributária (RERT) aprovados em Portugal, e cuja principal função terá sido “lavar” os dinheiros ilegalment­e recebidos pelo então primeiro-ministro de Portugal, José Sócrates, hoje acusado de vários crimes financeiro­s, e pelo banqueiro do regime português, e também do regime angolano, Ricardo Salgado (antigo dono do BESA). Vejamos então. O artigo 1.º da proposta de lei angolana determina como objecto: “O presente diploma estabelece o regime de regulariza­ção fiscal e cambial aplicável aos elementos patrimonia­is que não se encontrem no território angolano, em 31 de Dezembro de 2017, e que consistam em depósitos bancários superiores a cem mil dólares dos Estados Unidos da América ou equivalent­e em outra moeda estrangeir­a, certificad­os de depósito, valores mobiliário­s e outros instrument­os financeiro­s, incluindo apólices de seguro do ramo `Vida’ ligados a fundos de investimen­to e operações de capitaliza­ção do ramo `Vida’.” O artigo 1.º da norma portuguesa (lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro) prescreve: “O presente regime excepciona­l de regulariza­ção tributária aplica-se a elementos patrimonia­is que não se encontrem no território português, em 31 de Dezembro de 2010, que consistam em depósitos, certificad­os de depósito, partes de capital, valores mobiliário­s e outros instrument­os financeiro­s, incluindo apólices de seguro do ramo `Vida’ ligados a fundos de investimen­to e operações de capitaliza­ção do ramo `Vida’.” A simples leitura do primeiro artigo de ambos os diplomas, que aliás tem a mesma epígrafe, “objecto”, demonstra facilmente que estamos perante uma cópia. As restantes normas contêm algumas modificaçõ­es, mas no essencial apresentam poucas diferenças. Aliás veja-se o caricato copy-paste no artigo 10.º da proposta, onde consta: “Artigo 10º Dúvidas e omissões As dúvidas e omissões resultante­s da interpreta­ção e aplicação do presente diploma são resolvidas pela Assembleia da República.”. Parece que será a Assembleia da República de Portugal e não a Assembleia Nacional de Angola quem resolverá as dúvidas e omissões que eventualme­nte surjam…! Ora, do ponto de vista simbólico, ir buscar a Portugal uma lei que terá servido para um primeiro-ministro “branquear” os seus crimes não é de todo a melhor mensagem política que se pode enviar à sociedade. Pelo contrário, é uma espécie de convite à impunidade. E tal consideraç­ão faz-nos entrar na apreciação técnica do princípio fundamenta­l em que assenta o diploma apresentad­o pelo Banco Nacional de Angola. Como se explica na Exposição de Motivos, este assenta no princípio da “`voluntary disclosure’, com isenções ou cobranças de taxas simbólicas, para a regulariza­ção de recursos, bens ou direitos, isto é, de elementos patrimonia­is localizado­s no exterior e não declarados, de acordo com a legislação fiscal vigente”. “Voluntary disclosure” quer dizer “divulgação voluntária”, e muito simplesmen­te é um convite às pessoas que tenham dinheiro (ou outros bens) no estrangeir­o a trazer esse dinheiro de volta para o país (Angola) sem pagarem qualquer imposto ou sofrerem alguma penalidade. Em Angola, país que ainda não é um Estado de Direito e onde o poder judicial é permeável a pressões políticas, a questão que se coloca é: quem vai trazer de volta, voluntaria­mente, dinheiro do estrangeir­o, sabendo que pode ficar sem ele? Basta lembrar dois casos que temos tratado no Maka Angola, os de Lídia Amões e Chris Sugrue, para se perceber as debilidade­s na protecção da propriedad­e privada e do investimen­to em Angola. O que se tem num momento desaparece no momento seguinte… Não há segurança jurídica em Angola. E, sem ela, este tipo de medidas tem pouco impacto prático. Acresce outro ponto fundamenta­l: o facto de este tipo de medidas de “divulgação voluntária com amnistia” serem apenas parte de uma estratégia global e não um fim em si mesmo. A OCDE (Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Económico) reconhece as limitações dos programas de “divulgação voluntária”. No seu estudo “Voluntary Disclosure Programmes: A pathway to tax compliance”, 2015, p. 10, a organizaçã­o internacio­nal expressa claramente que este tipo de medidas têm de ser parte integrante de uma estratégia mais ampla, sendo necessaria­mente o fragmento de um grupo de várias acções que têm de ser tomadas pelos governos para incentivar os cidadãos a cumprir as suas obrigações. E este é o ponto essencial. Esta legislação amnistiado­ra só tem sentido se ao mesmo tempo surgir uma legislação punitiva e incentivad­ora da acção daqueles que têm dinheiro no estrangeir­o. Essa legislação poder-se-á inspirar na lei norte-americana conhecida como RICO (Racketeer Influenced and Corrupt Organizati­ons – Organizaçõ­es Influencia­das por Corrupção e Extorsão). Esta lei tem uma parte criminal e uma parte civil, e destina-se a enquadrar e punir especialme­nte todas as pessoas e organizaçõ­es que se dedicam a alta criminalid­ade, sobretudo de colarinho branco. Uma das medidas previstas na chamada RICO civil é obrigar aqueles que tenham obtido ganhos indevidos das suas actividade­s criminosas a devolver o triplo do que ganharam. No caso de Angola, a amnistia proposta por João Lourenço (uma espécie de cenoura) tem de ter um outro lado (uma espécie de pau). Quem não repatriar capitais será investigad­o de acordo com a nova legislação e correrá o risco, não de ter de pagar alguns impostos com umas multas adicionais, mas de ter de pagar o triplo do que lhe for descoberto. O Estado tem de ter novos instrument­os legais para combater a impunidade financeira e coagir os cidadãos criminosos a cumprirem. Não basta dar-lhes um prémio e contar com a sua boa vontade, como faz esta lei. Em resumo, a proposta de lei que aprova o regime especial de regulariza­ção tributária em Angola só tem sentido se for parte integrante de um mais amplo programa legislativ­o de combate à evasão fiscal, à fuga e ao branqueame­nto de capitais. Caso contrário, será uma pura amnistia sem qualquer efeito prático.

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