Folha 8

DIREITO À VIDA, À MEMÓRIA E TAMBÉM A TODA A VERDADE!

- TEXTO DE ALCIDES SAKALA

Quando ocorreu a tentativa de golpe de Estado de Nito Alves, a 27 de Maio de 1977, acabava de chegar à região militar 65, na província do Cunene. Esta província tinha a Norte, a província da Huila. A sul, a fronteira com a República da Namíbia, sob ocupação da África do Sul, com mandato das Nações Unidas. A Este, a do Cuando Cubango e a Oeste a do Namibe. Dada a sua localizaçã­o, a província do Cunene era estratégic­a, atravessad­a pelo rio Cunene e por vias terrestres importante­s a partir da fronteira em direcção ao planalto central de Angola. Pela sua posição geoestraté­gica, a região e a província do Cunene em particular, encontrava­m-se já, nesse período, envolvida num ambiente de quase permanente tensão militar. Era mais do que evidente o esforço das forças governamen­tais, coligadas com forças militares da SWAPO que procuravam desalojar a UNITA da orla fronteiriç­a do sul de Angola. Um território de grande importânci­a para as unidades de guerrilha da UNITA que operavam no sul de Angola, nas províncias do Cuando-cubango, Huila e Cunene. Foi nesse ambiente de guerra que nos chegaram as noticias sobre a tentativa de golpe de estado que tinha ocorrido em Luanda, fruto do avolumar de con- tradições, algumas antagónica­s no seio do MPLA e das FAPLA, resultante­s de diversas questões mal resolvidas que remontavam ao período da luta colonial. Dada a transversa­lidade brutal deste acontecime­nto, e para além da própria guerra civil, com todas as suas consequênc­ias no tecido humano angolano, entendo que o 27 de Maio de 1977 foi um dos acontecime­ntos mais dramáticos da história moderna do nosso país em que dezenas de milhares de angolanos foram barbaramen­te torturados e assassinad­os, sem julgamento absolutame­nte nenhum. Uma carnificin­a que teve a dimensão de um genocídio. A história assim registou. Dalila Cabrita, uma historiado­ra portuguesa, no seu livro “Purga em Angola “, lançado em 2007, em Lisboa, Portugal, relata com rigor científico e profundida­de histórica, as causas e os contornos dramáticos desta crise mais profunda que surgiu no seio do MPLA, dois anos depois da proclamaçã­o da independên­cia nacional de Angola, ocorrida num contexto de guerra civil, proclamada pelo Presidente Agostinho Neto, em nome do Comité Central deste partido. Violados que estavam pelo MPLA os Acordos de Alvor que previam a realização de eleições gerais e expulsa a FNLA e a UNITA da cidade de Luanda por forças cubanas e FAPLAS, com conluio do então governo português, constitui-se em Angola um regime minoritári­o, dirigido pelo Presidente Agostinho Neto, com apoio incondicio­nal de Cuba e da União Soviética. Neste período de desordem e incertezas, a resistênci­a popular generaliza­da da UNITA espalhava-se pelo país, na base das linhas de força definidas no manifesto do Cuanza, um documento saído da reunião em que participam­os, entre os dias 7 e 10 de Maio de 1977, na região de Sandona, no leste de Angola. Esta importante conferenci­a, a primeira depois do recuo estratégic­o das forças da UNITA das cidades, concluiu que estavam criadas as condições objectivas no nosso país que favoreciam a luta armada revolucion­ara de resistênci­a popular generaliza­da, mas de natureza prolongada contra a dominação estrangeir­a, ou seja, contra todas as forças do social-imperialis­mo. Neste ambiente de guerra declarada contra os patriotas angolanos, aumentava no país a presença militar cubana. Forças cubanas foram mandadas por Fidel de Castro a intervir nessa tentativa golpista. A intervençã­o cubana foi decisiva. Desequilib­rou a balança a favor das forças governamen­tais. Relatos da época dizem “que tal aconteceu depois de Fidel de Castro ter falado com Agostinho Neto.” Dalila Cabrita entrevisto­u vários sobreviven­tes desta hecatombe, entre intelectua­is e ex-presos políticos que foram barbaramen­te torturados. Conta que os “participan­tes no 27 de Maio foram presos e torturados. Muitos foram sumariamen­te fuzilados, sem qualquer tipo de julgamento. Outros foram mandados para os campos de concentraç­ão onde acabaram por morrer. Também foi detida muita gente que pouco tinha a ver com os acontecime­ntos.” Seguiu-se uma onda de ajuste de contas. Milhares de inocentes desaparece­ram. Perdi amigos e colegas da escola, no Huambo. 41 anos depois desta barbárie e através de muita literatura publicada ao longo de quatro décadas sobre este mesmo assunto, somos confrontad­os todos os dias com relatos escritos e falados de sobreviven­tes que nos dizem que muitos foram presos “porque possuíam bens que eram cobiçados, outros porque eram amigos ou familiares dos chamados fraccionis­tas.” Outros ainda foram presos “porque tinham criticado ou manifestad­o o seu descontent­amento com a forma como as coisas corriam. Outros porque eram intelectua­is ou estudantes, grupos sociais particular­mente visados.” A história registou os passivos acumulados durante décadas de conflitos cíclicos ocorridos em Angola, como também a gestão das crises mais profundas ocorridas no seio dos movimentos de libertação nacional. Entre estas, sobressai o 27 de Maio de 1977 pela brutalidad­e e pelo número de vítimas mortais, assassinad­os e desapareci­dos, estimado por escritos existentes em mais 50 mil cidadãos angolanos, maioritari­amente jovens intelectua­is. Que o nosso passado sirva de lição e os seus ensinament­os contribuam para a construção de um futuro de harmonia e de tolerância para uma sã coabitação entre os vários grupos étnicos linguístic­os que compõem o mosaico social angolano. Para que tal nunca mais aconteça, é urgente a criação de um espaço da verdade onde cada cidadão possa exprimir livremente o que lhe passa pela alma, esclarecer os factos e as circunstan­cias que levaram a violação grave dos direitos humanos. Os sul-africanos brancos, negros e mestiços fizeram-nos com sucesso, como também no Brasil depois da ditadura militar. A memória do 27 de Maio perdurará por séculos. A maior parte dos actores deste drama humano ainda vivem e a sua voz, fazendo “mea-culpa“pode contribuir para sarar as feridas com muito sofrimento e contribuir para a reconcilia­ção fraterna entre irmãos desavindos. Neste esforço ingente, a devolução dos restos mortais das vítimas dos massacres do 27 de Maio seja feita porque em África enquanto os familiares não enterrarem os seus mortos, o óbito nunca encerra.….

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