RAFAEL CONTINUA VIVO? SIM. ENTÃO ISSO É DEMOCRACIA!
Estávamos em 2014. O sociólogo angolano Paulo de Carvalho defendia, em Lisboa, que o facto de o activista dos direitos humanos Rafael Marques estar vivo era a prova de que Angola é uma democracia. Em 2018 tudo é diferente. É? Pelo menos Ondjaki acha que estamos muito melhor. E como estão ambos vivos, felizmente, a democracia é pujante. “Quando as pessoas – e alguns políticos, inclusivamente – dizem que em Angola vigora um sistema ditatorial, isso não é verdade”, sustentou o professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, em Luanda, numa conferência proferida, a convite do Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) de Lisboa, subordinada ao tema “Sistema democrático e direitos de cidadania em Angola”. Para sustentar essa sua convicção, Paulo de Carvalho contou um episódio ocorrido na Fundação Mário Soares, em Lisboa, em que o jornalista e activista dos direitos humanos criticou o regime angolano, tendo-lhe o académico respondido: “Se em Angola houvesse um sistema ditatorial, tu, meu amigo Rafael Marques, não estarias aqui a falar para nós, estaríamos nós a chorar na tua campa”. “Estava eu a fazer a minha tese de doutoramento quando recebi um convite da Fundação Mário Soares para ir a uma conferência (…) e o que se dizia por lá era que em Angola vigorava um sistema ditatorial
– eram angolanos que estavam a dizê-lo – e eu, no final, pedi a palavra, Mário Soares não ma queria dar, mas eu insisti e disse: ‘Acho que não fica bem nós virmos para aqui aldrabar, dizer que Angola é uma coisa que não é’”, relatou. “No final, recebi uns ‘ recados’ das pessoas que lá estavam, não vou citar os nomes, dizendo ‘pronto, é verdade, mas isso não deve ser dito assim, aqui fora’, mas eu acho que temos de ser justos, correctos, e se queremos fazer política, como era o caso dessas pessoas [que estavam na conferência], tem de haver um mínimo de honestidade intelectual”, frisou. Segundo o sociólogo, Rafael Marques só tem visibilidade pública precisamente porque lhe foi permitido publicar os seus textos na imprensa angolana, o que prova que existe liberdade de expressão, que não há censura, e isso só reforça a sua tese de que Angola é uma democracia. “Se Rafael Marques tivesse sido morto, era mais um,
era um desconhecido. Mas foi o sistema angolano que, por ser democrático, o tornou conhecido”, insistiu. Continuemos em 2014. Continuemos com Paulo de Carvalho. A Agência Angola Press (Angop) foi destacada no dia 31 de Outubro de 2014, em Luanda, como uma das Escolas de Jornalismo angolano que marcou e continuava a marcar Angola por formar profissionais qualificados que contribuíram para o desenvolvimento da Comunicação Social em Angola. O destaque foi feito por Paulo de Carvalho, durante uma palestra sob o tema “39 Anos de Jornalismo Angolano”, promovida pelo Centro de Imprensa Aníbal de Melo (CIAM) e a União dos Jornalistas Angolanos (UJA), tendo reconhecido, igualmente, a nacionalização do Jornal de Angola, a Rádio Nacional de Angola (RNA), Televisão Pública de Angola (TPA) e do Jornal Desportivo Militar, em 1975, como períodos importantes que acompanharam a evolução sociopolítica do país.
Paulo de Carvalho apelou para que os profissionais da Comunicação Social devem exercer com isenção e maior responsabilidade o jornalismo, para contribuírem no reforço dos valores morais e culturais do país, bem como reportarem factos que não criam bajulação na opinião pública. A ocasião juntou vários profissionais da classe jornalística, com destaque para a presença do Director Nacional de Informação do Ministério da Comunicação Social, Rui Vasco, secretário-geral da União dos Jornalistas Angolanos, Manuel Miguel de Carvalho, director do CIAM, António Mascarenhas, entre outras individualidades. Paulo de Carvalho tem o direito, até porque está (quase) sempre alinhado com o regime, de dizer o que pensa mesmo não se sabendo se pensa no que diz. A sua tese de que o facto de Rafael Marques estar vivo é a prova de que Angola é uma democracia é emblemática. Já não se
pode dizer o mesmo em relação, entre muitos outros, a Alves Kamulingue, Isaías Cassule e Manuel de Carvalho Hilberto Ganga…
É um sociológic comentário baseado na convicção, genética ou adquirida, de que os angolanos – com excepção dos ligados ao regime – são todos matumbos. Além disso, Paulo de Carvalho mente quando diz que, se acaso Rafael Marques fosse assassinado, “estaríamos nós a chorar na tua campa”. Isto porque estariam, isso sim, a festejar e – como bons sipaios – a dar urras aos executores. Não se sabe se, no tal país de faz de conta onde Paulo de Carvalho encontra a democracia, honestidade significa decoro, modéstia, pudor, castidade, honradez e probidade. Provavelmente significa o oposto. Daí a referência a “um mínimo de honestidade intelectual”. Paulo de Carvalho, para além de ter descoberto a Pedra Filosofal, a pólvora, a roda e a uma parte do milagre da multiplicação dos ovos de ouro presidenciais, também conseguiu descortinar aquilo que a esmagadora maioria dos angolanos não via e continua ser ver: liberdade de expressão. A não ser que viva noutro país, o sociólogo (e continuamos também sem saber se sociologia significa, ou não, estudo científico das sociedades humanas e dos factos sociais) sabe que o Povo até tem medo de pensar, pois sente na pele que até prova em contrário é culpado. Mas haverá, acreditamos, razões que a razão (não) desconhece para puxar dos seus galões de subserviência.