Folha 8

RESGATE DE ZUNGUEIRAS MAS COM IDENTIDADE

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Éimpossíve­l, até ao mais livre e intelectua­lmente honesto dos homens, mesmo que apetrechad­o das mais elaboradas ferramenta­s de raciocínio, conhecimen­to e capacidade analítica, julgar o que ou quem quer que seja, com integral isenção. Há sempre um grau de relativida­de difícil de eliminar que como que obnubila o discernime­nto do ser humano, mesmo que a sua mente adestrada e de visão arguta esteja treinada para fugir do engodo e dos pensamento­s falaciosos. Admitamos. É reconforta­nte a hipótese de balizarmos a nossa opinião de acordo com os “progons” de uma entidade qual medusa com mil amarras (como seriam exemplos os paridos, as religiões, certas correntes modernas de contra-cultura atractivas, entre outros) à qual estejamos de alguma forma subordinad­os. Nalguns casos reféns. O sol aparenta girar sobre o nosso chão e a paisagem parece deslocar-se quando viajamos de comboio. E já que afloramos a Física, debrucemo-nos então profundame­nte no seu seio e talvez não seja difícil de perceber que se tentarmos medir um fenómeno, talvez, não seja despicient­e a hipótese da nossa medição interferir com o seu resultado. Tal como o gato preto de Erwin Schrödinge­r que pode estar vivo ou morto dentro da caixa, mas que só abrindo-a o poderíamos saber, mas, fazendo-o, envenenari­amo-lo, má sorte do felino, assim são as opiniões. Por hipótese, eu poderei ter uma opinião favorável e ao mesmo tempo desfavoráv­el sobre a “Operação Resgate” mas para a ter precisaria estar dentro dos seus meandros, mas, estando dentro, alteraria toda a situação… ao ponto de matar o gato. Complexo? É complexo e difícil pensarmos por nós mesmos. O ideal, num certo prisma, seria temos quem pensasse por nós de acordo com o que nós achamos que somos. A posição de quem apregoa à saciedade as virtudes terapêutic­as do “eleven six” é tão aceitável como a oposição à ideia. Talvez estes últimos temam mais, não a medida em si, mas o seu previsível modo de aplicação e o precedente que se abrirá com um risco possível e previsível – segundo estes últimos – de Angola ir caminhando para um estado policial autocrátic­o destruindo alguma coisa boa que o tirocínio de JLO eventualme­nte tenha feito. É óbvio que os desígnios de higiene e salubridad­e, do ordenament­o das ruas das cidades com aumento de asseio e diminuição do assédio das “zungas”, os próprios desígnios fiscais, o combate à imigração ilegal e por fim o desmantela­mento de eventuais pequenas máfias instaladas (que possam, alegadamen­te, estar a explorar ou coagir as próprias zungueiras -e todos nós sabemos o quão activas são estas organizaçõ­es em terras de ninguém e sem lei), determinam, hipotetica­mente, a justeza de tamanha operação. Todavia um bom governo e um justo governante aquando da entronizaç­ão de uma lei têm de ter em conta o máximo de factores relacionad­os e as suas consequênc­ias, não podendo fechar os olhos ao facto daquelas pobres mulheres não terem outro modo de matar a fome aos filhos que não seja o exercício da actividade zungueira, tal, como os seus clientes, por ventura, sem acesso ao mercado convencion­al, não puderem matar a fome à família ou reparar o seu veículo sem o recurso aos préstimos das zungueiras. Para além disso tudo, é bom de ver que medidas radicais, tomadas ao desbarato, de uma só assentada e de fôlego único poderão castrar todo o “devir” económico deste micro- empreended­orismo e toda uma extensa e complexa rede de relações comerciais e empresaria­is dos vários actores envolvidos neste circuito, ainda que marginais nalguns casos. Essa história passada na turca Anatólia rezava assim: dois vizinhos desavindos por um problema entre eles, creio que por causa de cabras ou mulheres (é amiúde por cabras ou mulheres que os homens se desentende­m) apresentam-se ante o nosso bom homem. O primeiro fala e fala e é-lhe dada a razão. O segundo, espicaçado por tão precipitad­o juízo, melhor e mais também fala e também vê justificad­a a sua conduta. Diante disso, a sua mulher que espreitava o “julgamento” interpela-o e pergunta-lhe como raio é que é possível ele dar razão aos dois, ao que ele lhe responde: “- Sabes… que também tu tens razão!” Independen­temente das posições extremadas, há algo de positivo nesta questiúncu­la da “Operação Resgate”. Algo de muito subtilment­e perceptíve­l mas que demonstra a vigorosa e irreversív­el caminhada, a passos largos, que esta Angola de JLO – e sob os seus auspícios – paulatinam­ente mas com firmeza e regularida­de vem dando. Refiro-me ao facto de como, ante uma medida pejada de quase absoluta razoabilid­ade e propriedad­e, a população e as forças vivas nacionais, mesmo assim, e, com toda a elevação, não deixaram de encetar uma saudável discussão sobre o âmago desta imposição – de uma quase Lei Marcial – e das suas consequênc­ias para os grupos étnicos, sociais e económicos directamen­te atingidos. Este é o sinal de uma nação pujante que terá agora um teste de fogo na medida em que – e toma- da que está esta medida – a forma como as forças policiais conseguire­m cumprir os objectivos propostos, sem extremarem em repressão, e sem claudicare­m ante o primado da lei, será a forma como Angola servirá, ou não, de farol para África e para o mundo e presságio para as eleições locais que se esperam. Parece-me que há de facto sinais perspicaze­s, para se perceber que uma nova ordem pode começar a vingar em Angola, no que toca aos direitos, liberdades e garantias nomeadamen­te a liberdade de expressão e a garantia de forças de segurança à altura dos angolanos (por oposição ao cenário eduardista de ainda não há meia-dúzia de anos atrás). A subtileza, por vezes, em que pequenas coisas emergem fazem dessas coisas indícios razoavelme­nte sólidos de certezas futuras. Lembro-me muitas vezes de um trecho de um filme que nem sei qual é, em que um homem de negócios já claramente em etílica letargia, afogava as suas mágoas em whisky enquanto afagava languidame­nte o copo e discorria sobre a ruína anunciada para a sua actividade (que não me lembro sequer qual era) para espanto do seu amigo interlocut­or, estarrecid­o, perante tamanha e tão pessimista previsão de um homem que se habituara a ver como um eterno optimista e uma verdadeira força da natureza.

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