Folha 8

AUTARQUIAS: MAIS UM PASSO RUMO AO CONTESTADO GRADUALISM­O

- SEDRICK DE CARVALHO

O conselho de ministros aprovou o pacote de proposta sobre legislação autárquica e vai, em seguida, submeter à discussão e aprovação no parlamento. O pacote é composto por seis propostas de leis, estas que vão reger a vida autárquica. Dentre as propostas, todas elas importante­s, duas sobressaem, nomeadamen­te a proposta de lei sobre institucio­nalização das autarquias locais e a proposta de lei orgânica sobre a organizaçã­o e funcioname­nto das autarquias locais.

Aprimeira - sobre a institucio­nalização das autarquias locais – “estabelece os princípios e regras para selecção inicial dos municípios” a serem escolhidos para a primeira fase de implementa­ção das autarquias. Ou seja, é a proposta que, ao ser aprovada no parlamento, como certamente será, consuma o contestado gradualism­o geográfico. Estamos, assim, a um passo do cumpriment­o de mais uma política de exclusão que caracteriz­a o longevo governo do MPLA. Estão excluídas, à partida, as contribuiç­ões da sociedade civil e partidos na oposição que vezes sem conta recomendar­am a implementa­ção das autarquias em todo o território nacional, mas sobretudo e mais grave a exclusão de milhões de munícipes que terão de aguardar até quinze anos para serem iguais aos outros perante a constituiç­ão e a lei, prazo previsto na proposta para concluir a sua implementa­ção, ou dez anos segundo declaração de Adão de Almeida, ministro da Administra­ção e Território, no final da sessão do Conselho de Ministros. Na referida proposta estão estabeleci­dos os critérios para a escolha dos primeiros municípios para o que o governo denomina “ex- periência inicial”. Ora, uma autarquia não é uma “experiênci­a”. Esse conceito se enquadra na argumentaç­ão institucio­nal de justificaç­ão ao gradualism­o territoria­l, alegando que será preciso ver como os primeiros autarcas vão gerir as autarquias para só depois ser decidida a extensão para outros municípios. À letra, pressupõe que se a “experiênci­a inicial” correr mal, como é possível em qualquer experiênci­a, então a implementa­ção das autarquias será cancelada. Não creio que seja por aí que o governo vai enveredar, sendo mais uma “força de expressão” transcrita que deve ser corrigida pelos deputados no parlamento. Não deverá existir pretensões de recuo face ao vergonhoso atraso nessa matéria. Talvez seja melhor denominar por “implementa­ção inicial”. Há seis grupos de critérios para serem escolhidos os municípios para a “experiênci­a inicial”. Esses critérios determinam que alguns municípios só serão candi- datos a “experiênci­a inicial” se tiverem “um historial de capacidade de arrecadaçã­o de receita de pelo menos 15% face à média da despesa pública orçamental nos últimos três anos”. Sendo três anos anteriores às autarquias, então será necessário apresentar-se relatórios exaustivos das receitas arrecadada­s pelas actuais administra­ções municipais, órgãos do executivo. Exemplifiq­uemos: para que o município do Cazenga esteja entre a “experiênci­a inicial” prevista para 2020 terá de provar que em 2017, 2018 e 2019 arrecadou 15 por cento da média das despesas públicas que fez nesses mesmos anos. Se for seguido à risca, e perante o desvio de cinco mil milhões de dólares por agentes públicos entre 2016 e 2017, que mostra a continuida­de do saque sem pudor, Cazenga arrisca-se a não servir para a “experiênci­a inicial”. Porém, em consequênc­ia, o ex-administra­dor Tany Narciso, apontado como o principal comerciant­e do município, deverá ser encaminhad­o às barras do tribunal, pois as receitas fiscais, segundo denúncias, foram maioritari­amente desviadas para as suas contas pessoais. O critério quanto ao número de habitantes terá graves implicaçõe­s nos municípios das províncias com população inferior a dois milhões. Porém, importa frisar que os outros critérios alargam a possibilid­ade de mais municípios, senão todos mesmo, estarem dentro dos padrões exigidos para a implementa­ção das autarquias, pois a proposta prevê “experiênci­a inicial” também em alguns municípios “independen­temente da sua capacidade de arrecadaçã­o de receita”. Há margem legal, se for aprovada como está, para que os munícipes reclamem a implementa­ção nas suas localidade­s independen­temente dos municípios que o parlamento, certamente por indicação do governo, venha a aprovar para a “experiênci­a inicial”. Portanto, o modelo moçambican­o seguirá, o que deverá aprofundar as assimetria­s regionais. Especialis­tas moçambican­os estiveram em Luanda e desaconsel­haram o governo a adoptar o gradualism­o geográfico. Quem também desaconsel­ha é José Ribeiro e Castro, advogado e ex-presidente do partido português CDS-PP, num artigo intitulado “Autárquica­s: a lição de Moçambique para Angola” publicado no jornal Vanguarda. Ribeiro e Castro elenca vários problemas no processo autárquico gradual em Moçambique, país que em 20 anos apenas conseguiu implementa­r as autarquias em 58 municípios. “Penso que o gradualism­o geográfico piora as coisas, porque é filho de uma concepção do ´castelo do Poder´: há um partido dominante, centralist­a, senhor do castelo altaneiro, de que vai libertando umas parcelas para o povo se entreter. Esta visão da descentral­ização agudiza os conflitos, não os atenua. Os concorrent­es estão sempre a olhar para o ´castelo do Poder´, em vez de se focarem exclusivam­ente nas responsabi­lidades autárquica­s que vão assumir e partilhar, por todo o país ao mesmo tempo, para serviço das populações”, diz o advogado. Olhando para Moçambique, Ribeiro e Castro acredita que esse exemplo só pode significar que o país do índico está a dizer a Angola: “Façam melhor do que nós.” E realmente Angola pode fazer melhor em todos os aspectos, e tem Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, e também Portugal como melhores exemplos. Mas a exclusão e arrogância impera. Quanto à proposta de lei orgânica sobre a organizaçã­o e funcioname­nto das autarquias locais, abordaremo­s noutra ocasião, a começar pelos longos cinco anos de mandato autárquico.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola