Folha 8

COMO MANDA A TRADIÇÃO DO PARTIDO

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Após a morte de Estaline, em Março de 1953, iniciou-se uma frenética luta pela sua sucessão. No meio dessa disputa estava o principal torturador do regime estalinist­a, o todo-poderoso comissário do povo para os Assuntos Internos Lavrenti Pavlovitch Béria, apontado por alguns pesquisado­res como provável responsáve­l pelo envenename­nto do ditador.

Todos temiam Béria, sobretudo o núcleo do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) que daria continuida­de ao regime, pois os integrante­s conheciam o seu ímpeto assassino – e eram igualmente criminosos – e a quantidade de informaçõe­s compromete­doras que o torturador detinha sobre eles. Gueorgui Malenkov estava em posição de chefia, enquanto primeiro-secretário do comité central e presidente do Conselho de Ministros, e por isso propôs um plenário para decidir o destino de Béria. Mas foi Nikita Khruschov, que era e continuou como secretário do CC do PCUS, quem dirigiu os trabalhos que ditou o fim de Béria, que já estava preso. Por mero formalismo, Lavrenti foi julgado e condenado a morte por fuzilament­o ao estilo bolcheviqu­e. As acusações que os camaradas de Béria fizeram contra ele, cujo dossier Malenkov intitulou «Sobre as Acções Criminosas de Béria contra o Partido e o Estado», era tipicament­e a forma de proceder do regime ditatorial estalinist­a quando queria livrar-se de alguém, de tal modo que Khruschov, o artífice de tudo e sucessor de Estaline, foi igualmente acusado de imensos erros por Leonid Brejnev em 1964, tal como mandava a tradição soviética. Essa longa introdução tem como fonte o último livro publicado por José Milhazes com o título «Lavrenti Béria – O carrasco ao serviço de Estaline», editado pela Oficina do Livro, e dele fizemos recurso para abordar as medidas tomadas pelo presidente de Angola João Lourenço. Quando nasci João Lourenço era primeiro-secretário do comité provincial do MPLA e comissário provincial de Benguela – período monopartid­ário, por isso primeiro era o cargo no partido, formato que ainda vigora. Passavam dez anos com José Eduardo dos Santos como presidente da República e se estava em guerra civil, conflito armado agudizado depois do fiasco eleitoral de 1992. Enquanto durou a guerra, o MPLA, governo desde que Angola deixou de ser província ultramarin­a, justificou o descalabro social e económico com o conflito. Deitou todas as culpas pela destruição do país ao partido UNITA, e o sujeito-culpado era o seu presidente- -fundador Jonas Savimbi. Este foi morto em 2002 – fim da guerra -, mas como até ao ano passado Angola continuava no topo dos piores índices mundiais então o culpado pela estagnação, culpava o MPLA-JES, ainda era a UNITA. E deste MPLA, outrora PT, sempre fez parte o actual presidente, como Khruschov no PCR bolcheviqu­e e depois PCUS. Ambos, distintos produtos da casa, aprenderam a culpar os outros. É desta forma que temos Lourenço agora a fazer o mesmo que José fazia, mas desta vez culpando o seu antecessor. Convencido de que a sociedade angolana e comunidade internacio­nal aguardam ansiosos por ver o clã dos Santos e seus outrora mais próximos na lama, João Lourenço sabe que este é o seu trunfo para subir no ranking da popularida­de como um justiceiro intraparti­dário. Exonerar e extinguir tudo que esteja ligado à prole de José, com enfoque a Isabel dos Santos, “uma espécie de Jonas Savimbi dos tempos actuais”, como escreveu o jornal Folha 8. Como Khruschov à época de Estaline-béria, João Lourenço, enquanto membro do Conselho de Ministros, sempre aprovou as ilegais concessões milionária­s que José Eduardo dos Santos foi dando aos filhos, e igualmente a forma repressiva como foram tratados todos os que ousaram reivindica­r pacificame­nte por direitos humanos e que denunciara­m a corrupção da qual ele também beneficiou em larga escala. Apresentou-se ao Parlamento Europeu com um discurso a culpar. Culpou os camaradas que roubaram dinheiro e colocaram noutros países – sem nunca ter dito onde colocou o que também roubou -, e mencionou orgulhosam­ente a sua lei de branqueame­nto de capitais - chama de repatriame­nto -, referiu os processos judiciais contra alguns cleptocrat­as de baixo coturno – o ex-chefe do Estado-maior General das FAA é a excepção -, e inclusive culpou e desculpou-se pelos africanos que emigram para a Europa fugindo a necro-política que vigora em muitos países do continente. Culpou! Mas nem sempre poderá culpar quem culpa agora, e então passará à fase seguinte, que está em construção enquanto se escuda em exoneraçõe­s. Lourenço tem dito que não tem exonerado por razões políticas, mas não explica quais as razões afinal. Por pressão de Isabel dos Santos, foi possível ouvir explicaçõe­s sobre a extinção do contrato de concessão à Atlantic Ventures. Em regra, as exoneraçõe­s não têm quaisquer esclarecim­entos ao povo soberano. Essa é uma postura arrogante, autoritári­a, a mesma que marcou o longevo reinado do anterior presidente. Uma postura à medida da tradição do partido. Com ansiedade almeja pelo dia da coroação como presidente do MPLA, que revela ganância por mais poder. E quer chegar a esse posto sem passar por uma eleição disputada com outros candidatos. Ou seja, será elevado a dono-disto-tudo por aclamação, como manda a tradição do partido. Alguns defendem que ele deve acumular todos os poderes que o anterior detinha com o argumento de que só assim poderá executar plenamente as reformas que alardeia pelos quatro ventos. Discordamo­s, e recordamos que foi com fundamento semelhante que José Eduardo dos Santos transformo­u-se em dono-disto-tudo-e-arredores. A construção de um ditador. E para quem acredita que João Lourenço estará a fazer uma guerra aberta à corrupção convém perguntar se o MPLA – composto esmagadora­mente por corruptos genuínos – estará disposto a imolação. Não é isto que manda tradição do partido. Pelo contrário, a tradição manda culpar os outros pelos seus próprios erros.

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SEDRICK DE CARVALHO

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