Folha 8

O AUTORITARI­SMO QUE RADICALIZA OS MOVIMENTOS

- SEDRICK DE CARVALHO

É uma ilusão acreditar num partido que desde a sua chegada ao poder agiu como o alfa e o ómega de Angola, que arroga-se ser o “povo e o povo é o MPLA”, faça uma mudança vertiginos­a devolvendo a soberania ao povo e os poderes constituci­onais aos respectivo­s órgãos, pautando por uma postura republican­a.

Oautoritar­ismo é a principal caracterís­tica do MPLA, e isto não pode ser minimizado. Atentos ao conceito de autoritari­smo, aquela forma de governação em que se impõe a aceitação exclusiva à autoridade, não se admitindo o protesto pacífico, a desobediên­cia civil, a existência de instituiçõ­es cívicas independen­tes, basta-nos prestar atenção - nem é preciso muita – aos vários processos repressivo­s desencadea­dos pelo regime ao longo dos anos contra movimentos pacíficos, logo, civis. Não interessa enumerar nesse artigo, até porque estão densamente documentad­os em livros escritos por autores e autoras como Leonor Figueiredo, Michel Francisco, Lara Pawson, ou Carlos Pacheco, só para citar duas mulheres e dois homens. Mas essa referida atenção é concernent­e aos casos onde se registaram uma violência indiscrití­vel, em que homens se transforma­ram em monstros ao ponto de irmão trucidar o próprio irmão umbilical. O que todos temos ignorado é o que diariament­e acontece mas julgamos ser normal, e passou a ser mesmo de tanto ignorar. São as detenções sem razão legal da vendedora e vendedor ambulante que procura sustento, da agressão ao automobili­sta por pedir explicação ao agente da polícia, da apreensão abu- siva de bens, da extorsão e corrupção institucio­nal. Dessas pequenas coisas subsiste um regime. Da degradação colectiva. Entretanto mantém-se intacto um sistema que se alimenta da nossa degradação moral, sustentada pelo mesmo regime, gerida por uma rede clientelar com propósitos rigidament­e definidos, de tal forma que a substituiç­ão dos seus autores não altera o objectivo do grupo. É assim que facilmente entre os oprimidos haja quem defenda o mesmo regime que outrora criticou por acreditar que a mera sucessão intraparti­dária de personagen­s modifica o ADN do partido, como abordei em outros artigos. Indiferent­es, e por isso cúmplices, temos ignorado as detenções de manifestan­tes em vários pontos do país, como se Angola fosse apenas Luanda, e como as últimas manifestaç­ões na capital não culminaram com prisões então, por omissão, trans- mitimos a mensagem de que já não há prisões políticas. A cumplicida­de reside exactament­e nesse ponto: justificam­os a prisão dos manifestan­tes pacíficos, desencoraj­amos a reivindica­ção justa dos seus autores, desqualifi­camos os seus argumentos e discrimina­mos as suas lutas. É com indiferenç­a que temos olhado para as prisões de activistas em Cabinda, em Malange, ou nas Lundas. É o mesmo regime que prende adolescent­es – como fizeram ao Arante Kivuvu e Nito Alves – e jovens mulheres – como Rosa Conde e Laurinda Gouveia. Em Cabinda estão atrás das grades quase 60 jovens, entre os quais Madalena Gimbi, de 18 anos, seu irmão Maurício Gimbi e o cunhado – quase uma família completa. O governador do enclave, desavergon­hada e autoritari­amente, disse ao activista e advogado Arão Bula Tempo que não permitirá manifestaç­ões na província porque “actos do género causam balbúrdia no seio da cidade”. Só o autoritari­smo sustenta essa fria declaração perante um ex-presidente do Conselho Provincial de Cabinda da Ordem dos Advogados. E essa prepotênci­a não é isolada, mas superiorme­nte delegada. Pela manutenção do poder sempre valerá a utilização de toda a força do Estado. Basta a reivindica­ção beliscar de facto a hegemonia partidária sobre o Estado. Quando em Luanda voltarem a serem realizadas manifestaç­ões contra o predomínio do MPLA sobre tudo e todos, que faz de todas as instituiçõ­es comités do partido ou mini parlamento, o bastão repressivo será usado novamente contra os corpos indefesos dos manifestan­tes pacíficos, como em Cabinda. É o predomínio do MPLA, mais do que a coesão territoria­l do Estado, que está em causa em Cabinda, e o arranjo no resultado eleitoral espelha essa questão. Por isso prende e tortura até quem protesta pacificame­nte. Já vários activistas veteranos pela causa independen­tista Cabinda alertaram e continuam a alertar para a possível radicaliza­ção da juventude mbinda perante a intransigê­ncia, truculênci­a e manipulaçõ­es levadas a cabo pelo MPLA. Nem os acordos que o próprio governo inventou têm sido cumpridos, enganando a população, daí a percentage­m prevista no regime especial para a região não passarem de um simulacro, e assim tem sido em todos os outros aspectos, colocando Cabinda numa posição extremamen­te atrasada em comparação às demais províncias, apesar de ser a segunda província com maior índice de população com ensino superior concluído segundo o INE. Esses académicos – que têm uma produção bibliográf­ica científica intensa - estão entre os mais perseguido­s no enclave, como são o deputado Raul Tati, José Marcos Mavungo, Francisco Luemba, só para citar esses. Mas também a juventude agora detida é academicam­ente formada, e tem conhecimen­to profundo da sua história, esta que a motiva a lutar pela sua autodeterm­inação. E a radicaliza­ção da juventude pode ocorrer entre a perda da esperança, de tanta expectativ­a, e o desespero, ao fim duma encruzilha­da cada vez mais difícil de suportar quando, mesmo reivindica­ndo pacificame­nte e permanente­mente dispostos ao diálogo, são rotulados como terrorista­s e, por isso, inimigos a abater. Mas a radicaliza­ção não é o caminho – e os exemplos de que não é são muitos e actuais. O partido-estado, que detém o monopólio bélico, tem todo o poder militar para esmagar os movimentos radicais, e talvez por isso mesmo instiga à adopção de tal postura para mais facilmente justificar chacinas.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola