Folha 8

A LIÇÃO DO SAMUEL

- TEXTO DE ORLANDO CASTRO

O relatório de actividade­s do Grupo de Trabalho para Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfic­o foi apreciado no 17.07 na Comissão de Cultura, da Assembleia da República de Portugal, país onde foi aprovado há 10 anos e implementa­do com carácter obrigatóri­o há quatro.

Em Angola o MPLA criou e adoptou a sua própria ortografia, com a ajuda dos seus amigos cubanos. E assim temos “sexta básica” e não “cesta básica”, “marimbondo na cumeia” e não na “colmeia”, “Repúbica”, “Silvicltur­a”, “Ectroténic­a”, “edífico”, “Ogânicas”, “orgãos”, “Senando”… Esta realidade, no que a Angola concerne, leva- me a recontar agora uma história verídica que, aliás, o Folha 8 já publicou em 7 de Maio de 2016. Isto porque, sobretudo mas não só, os nossos jovens de hoje escrevem português com os pés… e nem se descalçam.

Já lá vão 45 anos. No então Liceu Norton de Matos, em Nova Lisboa (Huambo), o professor José Fernandes Duarte ( que os alunos conheciam mais por “Pele Vermelha” ou “Pelinha”) dava uma daquelas aulas de português que algumas vezes ( não eram tantas como isso, desculpem lá!) eram chatas como o Diabo.

A talhe de foice, desse tempo também recordo com gosto e eterna saudade, as professora­s Dorinda e Dárida Agualusa.

– Samuel, não te importas de ler em voz alta a tua dissertaçã­o?, disse o “Pelinha” com aquele ar doutoral que, contudo, deixava transparec­er uma ponta de humor, coisa rara ( muita rara) durante as aulas. A turma ficou em silêncio. Sempre que o Samuel falava, até mesmo fora das aulas, a malta prestava atenção redobrada. Há muito que ele nos habituara às suas avançadas teses sobre quase tudo. O Samuel, já na altura com uma estatura física – tal como a intelectua­l – muito acima da média, levanta- se, afina a voz e aí vai disto. O silêncio tomou conta da aula. Todos estavam de olhos postos no Samuel. Muitos de nós até esquecemos o tempo que faltava para o intervalo.

E o Samuel lá esteve mais de meia hora a ler o trabalho que tinha feito. O “Pelinha” alternava um tímido sorriso com a máscara professora­l que habitualme­nte usava. Nós, os colegas, também estávamos atentos. Não pasmados porque, verdade seja dita, do Samuel ( ou “Sam”, como carinhosam­ente o tratávamos) não esperávamo­s outra coisa. Finda a leitura, o “Pelinha” disse:

– Samuel, não te importas agora de resumidame­nte “traduzir “tudo isso para português?

Foi a gargalhada geral, incluindo o “Sam”. Tudo porque, mais uma vez, o Samuel nos tinha dado uma lição de… português. De exímio português, tanto falado como escrito. De facto, ele era um dos melhores, talvez o melhor, aluno daquela disciplina. E de tal modo o era que quando queria – como foi o caso – a sua linguagem erudita nos deixava de cara à banda. Acontece que, pouco tempo depois, Angola entrou em guerra. Fomos uns para cada lado. Meses depois, vi pela última vez o Samuel. Estava fardado ( creio que era Capitão das FALA) e de metralhado­ra na mão.

Mais tarde, anos talvez, disseram-me que o “Sam” tinha morrido em combate.

Porque carga de chuva transforma­ram o “Sam” num militar? Porque carga de chuva Angola teve de perder um dos seus mais válidos filhos?

Porque carga de chuva mataram o Samuel Pedro Chivukuvuk­u?

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