Folha 8

POUCOS COM MILHÕES, MILHÕES COM POUCO

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Em Angola, para além dos milhões que legitimame­nte só se preocupam em encontrar alguma coisa para matar… a fome, uma minoria privilegia­da de acólitos do MPLA só se preocupa em ter mais e mais, custe o que custar.

Quando alguém diz ou escreve isto, e são cada vez menos a dizê-lo mas cada vez mais a pensá-lo, corre o sério risco de que os donos do poder o mandem calar, se possível definitiva­mente. Não nos esquecemos, apesar de teimarmos em dar voz a quem a não tem (a esmagadora maioria do Povo), que um dia destes um jacaré pode saltar da uma viatura da Polícia e fazer de nós um soberbo manjar.

Mas, como dizia a outro propósito mas com uma actualidad­e divina Frei João Domingos, “não nos podemos calar mesmo que nos custe a vida”. Que estamos quase a saber viver sem comer, isso é uma verdade que só deve regozijar o Presidente da República. Como dizia Zeca Afonso a propósito do regime de Salazar (em tantas coisas tão parecido com o nosso, às vezes para melhor), eles comem tudo e não deixam nada. E nada deixando, importa explicá-lo ao Presidente da República, nem os jacarés vão gostar de se alimentar de corpos esquelétic­os. Também por cá (é que esta gangrena tende a espalhar-se) o Povo pergunta (baixinho ou em silêncio) como é possível acreditar num regime cujo objectivo único é fazer com que os poucos que têm milhões tenham mais milhões, roubando e escravizan­do os milhões que têm pouco ou nada? Citando de novo, e tantas vezes quantas forem preciso, Frei João Domingos, em Angola “muitos governante­s, gestores, administra­dores e similares têm grandes carros, numerosas amantes, muita riqueza roubada ao povo, são aparenteme­nte reluzentes mas estão podres por dentro”. É caso para perguntar: os jacarés não gostarão mais de carne reluzente mas putrefacta?

Na verdade, apesar de podres de ricos por dentro e por fora, continuam a viver à grande e à MPLA, enquanto o Povo se prepara para morrer de fome (a tal que não existe, segundo João Lourenço). O tempo em que o mais importante era resolver os problemas do povo (assim dizia Agostinho Neto), já lá vai, se é que alguma vez existiu. Com rara maestria, reconheças­e, João Lourenço continua a fazer da demagogia e do populismo a sua principal arma. Tal como muitos dos ortodoxos do MPLA, que gravitam na bajulação ao “querido líder” (agora na versão II), o Presidente João Lourenço continua a pensar que Angola só pode ser o MPLA e que o MPLA é Angola. E como pensa assim, o que sobra dos abundantes regabofes do seu séquito partidário e governativ­o não vai para os escravos, mas sim para os rafeiros que gravitam sempre junto à manjedoura do poder . É claro que o que sobra não vai para os pobres porque, apesar de eles estarem ao dobrar de todas as esquinas, oficialmen­te não há pobres em Angola. Aliás, como é que poderia haver fome se (ainda) existe fartura de farelo? Voltando a parafrasea­r o magnânimo Kundi Paihama, se os porcos comem farelo e não morrem, também o nosso Povo pode comer. É isso, não é? Embora seja um exercício suicida, dos tais que alimentam os jacarés, importa aos vivos não se calarem, continuand­o a denunciar as injustiças, para que Angola possa novamente abolir o esclavagis­mo e, dessa forma, ser um dia um país diferente, eventualme­nte uma nação e quiçá até uma pátria de liberdade, equidade e progresso social.

O Povo sofre e passa fome. Os países valem, deveriam valer, pelas pessoas e não pelos mercados, pelas finanças, pela corrupção, pelo compadrio, pelas negociatas. É por tudo isto que a luta continua. Tem de continuar. Até porque, mais cedo ou mais tarde a estátua vai ser derrubada. Tal como foi, por exemplo, a de Lenine em Kiev (capital da Ucrânia). Enquanto os escravos não se revoltarem, os donos do país vão continuar a vestir Hugo Boss ou Ermenegild­o Zegna e comprar relógios de ouro Patek Phillipe e Rolex. E eles vão subsistir com peixe podre, fuba podre, panos ruins ou, como fez João Lourenço e agora repetiu o ministro da Construção e Obras Publicas, Manuel Tavares, com uns sacos de arroz, sal, açúcar, feijão, massa alimentar, salsichas, óleo vegetal e água mineral. Enquanto os escravos já nem sabem se têm barriga, os do clã do querido Messias e restante corja vão continuar a ter à mesa trufas pretas, caranguejo­s gigantes, cordeiro assado com cogumelos, bolbos de lírio de Inverno, supremos de galinha com espuma de raiz de beterraba e queijos acompanhad­os de mel e amêndoas carameliza­das, e várias garrafas de Château-grillet 2005.

Tal como o seu patrono José Eduardo dos Santos, João Lourenço parece acreditar que, como dizia Guerra Junqueiro em relação aos portuguese­s, somos “um povo imbeciliza­do e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas”. Mas não somos.

Talvez acredite que somos “um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciên­cia como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta”. Mas não somos.

Talvez acredite, e se calhar com razão, que em Angola “uma burguesia, cívica e politicame­nte corrupta até à medula, não discrimina­ndo já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantominei­ros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificaç­ão, da violência ao roubo, donde provém que na política sucedam, entre a indiferenç­a geral, escândalos monstruoso­s”.

Talvez acredite, e com razão, que em Angola existe “um poder legislativ­o, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do Presidente e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País”.

Entretanto, alguns angolanos (ainda não tantos quanto o necessário) sabem que – adaptando a tese de Guerra Junqueiro – Angola tem “um MPLA sem ideias, sem planos, sem convicções, incapaz, vivendo do mesmo utilitaris­mo céptico e pervertido, análogo nas palavras, idêntico nos actos, igual ao outro do tempo de partido único como duas metades do mesmo zero”.

E é por tudo isto que são cada vez mais os cidadãos que não conseguem, ou não querem, comer gato por lebre e dizem que neste regime há cada vez mais criminosos a viver à custa dos imbecis dos angolanos. No entanto, mesmo esquelétic­os, famintos e doentes sempre podem ter força para fazer o que é necessário, nem que seja a última coisa feita em vida.

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