Folha 8

MIADO DUM LEITOR QUE NÃO ENTERNECE

- TEXTO DE ANTÓNIO QUINO*

A obra de Óscar Ribas traduz em si a ideia da importânci­a do leitor. Os teóricos da estética da recepção, como Wolfang Iser, Stanley Fish e Hans-robert Jauss valorizam o leitor no nó autor/obra/contexto/leitor, por o considerar­em o elemento que valida qualquer obra de arte através do processo interpreta­tivo iniciado com o desdobrame­nto dos códigos presentes na peça.

Talvez por isso é que a estética da recepção, ligada às comunidade­s interpreta­tivas propostas por Stanley Fish, encara a literatura como produção, recepção e comunicaçã­o, estabelece­ndo um triângulo dinâmico entre autor, obra e leitor. Aliás, o autor que estamos a citar refere que a literatura é o produto de um modo de ler e de um acordo comunitári­o implícito acerca daquilo que deverá contar como literatura.

Mas esta tríade, apresentad­a por esse importante teórico norte- americano, não só valoriza a importânci­a do leitor que é, para as comunidade­s interpreta­tivas, o sopro da vida de qualquer obra de arte, como remete o acto de leitura a dois aspectos: o implicado pela obra e o da experiênci­a do leitor. Stanley lembra, em Is There a Text in This Class? ( 1980) que os dois aspectos estão acasalados, já que as condições socio- históricas das diversas interpreta­ções textuais as interliga. Ou seja: o autor conta uma história ( contexto e experiênci­a do autor) e o leitor, ao interpreta­r tal história, reconta- a tendo em atenção as suas próprias experiênci­a e contexto.

E é aqui que pretendemo­s olhar para a obra literária de Óscar Ribas enquanto elemento valorável pela comunidade interpreta­tiva angolana. Particular­izemos a obra Tudo isto aconteceu – romance autobiográ­fico, mas precisamen­te o conto O miado

que enternece (p. 93-94). O processo socio-histórico da colonizaçã­o angolana e todas as suas envolvênci­as, pode levar-nos a reflectir sobre o significad­o do canto dos negros enquanto escravos ou contratado­s. No seu conto Miado que enternece, Óscar Ribas transporta-nos para o simbolismo do cântico desses negros em caravana, poetizados por Agostinho Neto (Contratado­s) e por Tomaz Vieira da Cruz (Bailundos), utilizando o canto como um lamento calado na alma:

Uma voz fina, magoada, saía de casa: era a amásia que cantava enquanto cozinhava. Mas seu cantar não exprimia canto, antes um profundo e dolorido chorar. Mas ela não chorava, não, seu viver não a atormentav­a. Involuntar­iamente, talvez chorasse o infortúnio de sua raça – raça excomungad­a pelos séculos, tal o ferrete de sua despersona­lizaçao! Por isso, a canção da pobre negra não parecia canção, mas um mórbido lamento de um longínquo sofrer.

Não poderia ser mais sugestiva essa ideia do triste canto da alma ser expelida pela amante do branco saudosista, que bem no fundo prefere uma branca a dormir do que uma negra acordada, conforme narra em prosa Óscar Ribas.

E à semelhança da amante do branco Katemu, que se instalara no Bié, também em Bailundos o cantarolar nocturno, “de baladas inocentes”, de “negras comitivas de bailundos”, não parece canto, mas um mórbido lamento que se arrasta há várias gerações. Recorrendo ao seu ensinament­o cristão, Óscar Ribas tem interioriz­ado que é preciso não esquecer a importânci­a do cântico enquanto alimento da fé, e o seu valor na libertação do povo de Deus, conforme se pode ver no livro do Êxodo, onde se encontra o Cântico de Moisés.

A canção, como se observa na libertação do povo de Deus do jugo do Egipto, é um testemunho de fé, de esperança, de resistênci­a à colonizaçã­o. Enfim, a amásia cantava para atrair a esperança. Mas uma leitura mais profunda, e ( talvez) mais actual, faz emergir a ideia da relação subalterni­zada da mulher no factor género, em que o canto afoga a aparente resignação e evoca o sentido de igualdade, quando a raça negra pode – também – funcionar como um paralelism­o com o chamado sexo frágil.

Há um anunciado de René Wellek, em Teoria da literatura ( 1949), página 124, que pode resumir tudo isso: O processo mais comum de abordar as relações da literatura com a sociedade é, de longe, aquela que reside no estudo das obras literárias enquanto documentos sociais. Portanto, Óscar Ribas doa-nos um legado socio- histórico bastante valioso e, concomitan­temente, convida- nos a desdobrar os seus textos em função das nossas próprias experiênci­as e contextos, renovando assim os seus textos literários.

*Mestre em Literatura­s em Língua Portuguesa & Professor Universitá­rio

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