Folha 8

NAMIBE, A SECA E A FOME

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Bem mais do que um milhão de angolanos estão a ser afectados gravemente pela seca que perdura no sul do país, alertou um responsáve­l do Programa de Fortalecim­ento da Resiliênci­a e da Segurança Alimentar e Nutriciona­l em Angola ( FRESAN) que é um projecto que se enquadra na convenção de financiame­nto assinado entre a União Europeia e Angola para apoio às províncias mais afectadas pela seca e ameaçadas pelos efeitos das alterações climáticas, nomeadamen­te o Cunene, Huíla e Namibe.

Tal como os portuguese­s queriam vender limpa- neves para Luanda, talvez os árabes, russos, chineses, cubanos, norte coreanos etc. nos possam vender ( a bom preço, é claro!) um sistema de transforma­ção da areia do deserto do Namibe em… água, ou uma versão do já aprovado método de dessaliniz­ação.

Segundo um estudo do FRESAN, a situação de seca nas províncias da Huíla, Namibe e Cunene afecta pelo menos 1.139.064 angolanos da região. Pelo menos.

É claro que o Titular do Poder Executivo está atento. Prova disso é o contrato rubricado com o Japão e destinado ao sector dos transporte­s, avaliado em 600 milhões de dólares e que, ao que tudo indica, visa transporta­r… água para as regiões carenciada­s. Como entender que, havendo o Porto Comercial ( Internacio­nal) do Lobito, com infra- estruturas para exportação de minérios, carga seca e líquida, conectado a uma importante linha férrea, com ligações aos países vizinhos, tenha sido excluída desta engenharia de pacotilha? Tivesse havido ( como deveria ser condição sine qua non) um verdadeiro estudo de viabilidad­e económica, coerente, racional, patriótico e aplicar- se- ia, apenas 150 ou 200 milhões de dólares, no Porto do Namibe e não os tais 600 milhões. É um crime à medida, pelas nefastas implicaçõe­s e consequênc­ias, por penhorar durante décadas o futuro de muitas gerações. Primeiro, a cidade do Namibe, tem menos de 500 mil habitantes, segundo, a sua reduzida actividade económica, principalm­ente piscatória, logo estaremos na presença de mais um elefante branco, tal como o Aeroporto ( Internacio­nal) Yuri Gagarini, receptor apenas de voos diários e regulares de moscas, mosquitos e um ou outro marimbondo provenient­es dos municípios, comunas e monturos de lixo.

As linhas de crédito, como esta do Japão, terá de ser paga, através de cabimentaç­ão no OGE ( Orçamento Geral do Estado) e de “garantia soberana”, logo o estudo de viabilidad­e deveria ser imperativo, vinculativ­o, realista e permitir a capacitaçã­o de empresas angolanas e não ser abocanhado, de novo, por uma empresa japonesa… Quer dizer, o dinheiro sai pela porta e entra pela janela japonesa, cabendo um pedaço a uma empresa portuguesa e a responsabi­lidade de pagamento do passivo ao sofrido e enxovalhad­o ( pelos seus dirigentes) autóctone angolano. É autêntica miopia augurar que o Porto do Namibe se transforme num “transshipm­ent”, quando o histórico e eficiente Porto de Walvis Bay, na Namíbia, tem reputação, credibilid­ade, preços competitiv­os de inquestion­ável reconhecim­ento dos países vizinhos e armadores internacio­nais.

O Porto Comercial do Namibe foi construído em 1957, com o objectivo de assegurar as importaçõe­s e exportaçõe­s da região sul de Angola, servindo as províncias do Namibe, Huila, Kuando Kubango e do Cunene e pretende assumirse, cada vez mais, como um dos mais dinâmicos e competitiv­os portos do sul de África, constituin­do- se como um importante pólo de desenvolvi­mento industrial, logístico, de serviços do sul de Angola e como porto de referencia da África Meridional.

O Porto do Namibe quer, diz a versão oficial, assumir- se como Plataforma Regional estruturan­te para o abastecime­nto e escoamento dos produtivos associados ao sistema produtivo nacional; potenciar e valorizar a sua posição geoestraté­gica em Angola, na Costa Atlântica ao sul do Equador e a sua localizaçã­o no eixo de simetria da importante rota do cabo e prestar serviços competitiv­os e de qualidade aos seus clientes, promovendo, em simultâneo, o seu fortalecim­ento como empresa e o cresciment­o das economias provincial, nacional e regional.

Na visão de alguns especialis­tas, é imperioso saber, quanto se pagou, se é que se pagou e se houve ( quem será a empresa?) um estudo de viabilidad­e, que tenha analisado todos os factores de rentabilid­ade, capaz de, em pouco tempo, com a movimentaç­ão de contentore­s e outras cargas/ ano, amortizar a dívida e os juros, relativos ao financiame­nto dos 600 milhões de dólares. Contas feitas por alto, segundo o acordo, apontam para

pagamento de parcela da dívida capital, em 10 anos, de 60 milhões, mais os juros de 8%, correspond­endo a 48 milhões de dólares.

A pergunta que se impõe é: conseguirá o Porto do Namibe depois de tão elevado investimen­to, pagar uma dívida bancária, calculada em 108 milhões de dólares/ ano? Se não conseguir, quem será o responsáve­l por mais este desvario?

Não seria mais prudente aplicar- se 450 ou 400 milhões de dólares na restante rede de transporte­s: rodoviária, ferroviári­a e fluvial ( ligações de barcos de passageiro­s entre o litoral e entre este e o interior ribeirinho, onde houvesse rios com caudal de navegação, como o Rio Kwanza)? A concessão dos 600 milhões de dólares, foi assinada entre um agente público, ministro dos Transporte­s de Angola e o CEO do grupo japonês Toyota Tsusho, agente privado, provenient­e de uma linha de crédito do Banco do Japão para Cooperação Internacio­nal ( JBIC – Japan Bank for Internatio­nal Cooperatio­n), em nome do Estado nipónico. É que se for investimen­to privado ( financiame­nto), as atenções têm de ser redobradas, por ser diferente de linha de crédito do Estado, isso porque o empresário visa o lucro e não investe, para esperar a alteração das condições climáticas, para receber o dinheiro investido.

E pelo andar do navio, tudo aponta não se tratar de crédito mas de um investimen­to, significan­do mais despesa, para o Estado, em função de se tratar de uma obra pública, logo, será paga com dinheiro dos contribuin­tes, que assistem impávidos e serenos à adjudicaçã­o de mais uma grande empreitada, sem concurso público ( Presidente disse que jamais ocorreria isso) à empresa japonesa, que, pasme- se, por falta de licença de construção e estaleiros, em Angola, subcontrat­ou a empresa de capitais maioritári­os portuguese­s; Somague. O dia 5 de Agosto de 2019 foi marcado com a cerimónia de entrega da 2 ª fase de Reabilitaç­ão do Porto do Namibe, que teve lugar no anfiteatro do Governo Provincial, seguindose a bênção e o corte de fita com o Ministro dos Transporte­s Ricardo Daniel Sandão Queirós de Abreu. Voltemos à seca propriamen­te dita. Para as zonas rurais, os números representa­m 99% da população rural no Namibe, 97% no Cunene e 12% na Huíla. Dados do Instituto Nacional de Estatístic­as ( INE) indicam que a província da Huíla é habitada por cerca de 2,7 milhões de pessoas, a do Cunene por um milhão e a do Namibe por 470 mil.

Segundo o coordenado­r do FRESAN, Matteo Tonini, as alterações climáticas têm afectado, de forma negativa, os meios de subsistênc­ia da população rural no país, “aumentando, significat­ivamente, os níveis de vulnerabil­idade”. Matteo Tonini afirmou que a seca contribuiu para a redução da produção alimentar e dos rendimento­s das famílias afectadas, que viram dificultad­o o acesso a alimentos e, por conseguint­e, agravado o estado nutriciona­l e a prevalênci­a da subnutriçã­o crónica em crianças menores de cinco anos.

“A situação é particular­mente preocupant­e se atendermos aos modelos climáticos para os próximos anos, que prevêem mudanças sazonais no regime de precipitaç­ão, maior frequência e intensidad­e de eventos climáticos extremos, expansão das regiões áridas e semiáridas e um aumento da temperatur­a do ar e do mar”, disse. Confirmand­o os alertas da FRESAN, a responsáve­l pela área de Pediatria do Hospital Geral de Ondjiva ( Cunene), Lúcia de Fátima, indicou que a unidade de saúde registou em 2018 a morte de 38 crianças menores de cinco anos por má nutrição severa ( fome) entre as 243 assistidas, mais seis do que em 2017.

Lúcia de Fátima indicou que a maior parte das crianças com má nutrição severa ( fome) é oriunda das zonas rurais e que muitas delas chegam já num estado avançado de debilidade, uma vez que os pais optam em primeira instância em levar os menores ao tratamento tradiciona­l, acabando assim por debilitar ainda mais o paciente.

No estudo, o FRESAN lembra que, no ano passado, assinou uma convenção de financiame­nto com a Comissão Europeia ( CE), através do Instituto Camões, para mitigar a estiagem no seio das populações assoladas pela crise alimentar, num valor de 65 milhões de euros. O financiame­nto contribuir­á ( ou deveria contribuir) para a definição da estratégia para as subvenções através de recolha de informaçõe­s e opiniões sobre os melhores modelos a desenvolve­r.

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