Folha 8

KAFKA E ANGOLA

- BRANDÃO DE PINHO

Estava eu tranquilam­ente a terminar de ler um livro na casa de pasto onde fui almoçar ontem, da autoria de um ex- diplomata e ex- jornalista - chamado “A Conquista do Sertão” - que retrata a colonizaçã­o portuguesa inicial em Angola ( a colonizaçã­o a sério não a administra­ção paliativa, vergonhosa e acanhada que desde Diogo Cão os tugas foram fazendo) já nos fins do século XIX e princípios do seguinte abarcando a I Guerra e o período entre as duas grandes guerras mundiais.

Seria capaz de jurar que quase ninguém conheceria este autor de sua graça Guilherme de Ayala Monteiro. Todavia fui interpelad­o por um cavalheiro que gozava os últimos dias férias, que não tinha parado de me observar, quase no limite do confranged­or, acto que atribuí intuitivam­ente à sua provecta idade e consequent­e perda de algumas faculdades e decoro.

De imediato dirigiu- se a mim e perguntou-me se estava a gostar do livro ao que eu respondi que estava mesmo a acabar a sua leitura que havia começado apenas de véspera e que isto daria uma resposta mais exacta do que um mero “sim”.

Ainda bem, retorquiu esse clérigo ( como vim a saber depois) pois trata- se do meu tio- avô e fico muito feliz que seja reconhecid­o pela qualidade da sua literatura e tal como hoje, continuou o meu interlocut­or, também nos seus tempos a publicação de um livro era um processo absoluta

mente complicado e… kafkiano.

Logo de seguida tentou explicar- me o que queria dizer com o adjectivo que usou mas eu brusca mas gentilment­e interrompi- o e disse- lhe que não era necessário e continuei dizendo que se há um escritor cujo nome próprio mereça dar origem a um adjectivo universal para retratar situações quotidiana­s não será outro que não o boémio Kafka o que ele concordou aquiescend­o com o pescoço. Disse- me ainda que estava muito desiludido com a ignorância cada vez maior das pessoas – continuand­o o pedido de desculpas por me ter tomado por iletrado – e disse que entre o seus pares actualment­e era uma coisa muito comum que o obrigava a esclerosar o cérebro para se pôr ao nível daqueles com quem falava e eu retorqui- lhe que entre os meus colegas e pessoas em geral - mesmo aquelas com estudos superiores e em graus muito elevados – passava- se exactament­e o mesmo fenómeno. Disse- lhe eu próprio que nestes últimos dias tinha passado por situações muito kafkianas que julguei – inocenteme­nte - já não poderem acontecer em Portugal tal o emaranhado de documentaç­ão e carimbos enredando-me de tal forma – até porque havia sempre uma interdepen­dência de instituiçõ­es não se podendo quase desatar o fio à meada – que quase me levavam à insânia e continuei acrescenta­ndo- lhe que muitas vezes não usava certas palavras ou usando- as, também previament­e explicava o que queriam dizer, porque quer no vocábulo “kafkiano” quer noutros tinha a quase certeza que não só as pessoas não tinham lido “O Processo” como nem sequer faziam ideia da existência deste judeu da Boémia na actual República Checa ainda que de língua e cultura alemãs mescladas com hebraico e com o idioma da sua terra natal que lhe dava um sotaque que não passava despercebi­do.

O clérigo, talvez para concordar comigo por simpatia, afirmou que não havia no mundo país mais kafkiano que Portugal e foi nesse altura então que puxei dos meus galões numa ridícula pretensão de dar a entender perceber um pouco de Angola e dos angolanos – que sinceramen­te cada vez mais percebo menos e cada vez mais me desiludo – e disse-lhe que Angola era incomparav­elmente muito mais kafkiana, e acrescente­i: - Num duplo sentido; ao que ele replicou em parcas e grossas palavras com a voz de barítono que a celebração de eucaristia­s por certo lhe havia dado: - Como assim? Perguntei-lhe em jeito de resposta se também tinha lido “A Metamorfos­e” e percebi que ele não sabia sequer do que eu estava a falar num sorriso amarelo compromete­dor, sobretudo quando lhe perguntei: Sr. Padre, V. Eminência também não leu “O Castelo” nem “O Processo” pois não? E ele numa resposta espirituos­a própria de um ser superior disse-me um segredo: -Sabe meu jovem não li nem sei quem era essa Kafka, sei só que não ganhou nenhum Nobel porque eu decorei todos os nomes dos laureados e como não posso mentir acrescento que eu nem a Bíblia leio pois limito-me a ler biografias dos autores e resumos das obras para passar pelo intelectua­l que não sou e olhe que a maior parte das pessoas cai nesse ardil…

Eu ri-me e louvei-lhe a honestidad­e e disse que Angola era duplamente kafkiana devido à metamorfos­e que se vem assistindo e à forma como se vai transforma­ndo num insecto asqueroso de dia para dia tal qual como no livro, ao que ele retorquiu com graça: E esse insecto acaso não será um marimbondo? Não será por isso que o país repele investidor­es, capitalist­as, trabalhado­res, magnates dispostos a emprestar dinheiro e até os próprios cidadãos? Ao que eu respondi com tristeza: - Infelizmen­te meu caro amigo é isso que se passa e Lourenço foi apenas fogo de vista… No fundo, “kafkiano” está para a literatura como “estalinist­a” ou “salazarist­a” está para a política. Sendo que, curiosamen­te aliás, no caso do português, ainda se acrescenta outro sufixo ao nome próprio para o designar: - “Salazarent­o”; que é um salazarism­o ainda mais pejorativo, ditatorial e cheio de mofo prestes a ruir como é o caso do MPLA. Outra situação kafkiana amigos leitores é o Jornal de Angola na medida em que já não tem argumentos lógicos e que não atentem a inteligênc­ia dos angolanos pois se na mesma medida em que ostracizam JESSIE, enaltecem JLO, quando ainda num passado recente nem sequer uma crítica ao santomense era permitida ou alguma insinuação que fosse posicionan­do-se o pasquim, então como agora, tal qual como um cata-vento. A ilógica atitude do Pravda resulta no facto de insistirem numa quadratura do círculo mesmo após todas as marimbondi­ces associadas ao “Eme” que é a entidade para já, que defendem e protegem intransige­nte e irracional­mente, mesmo agora que o partido está moribundo e marimbondo e a desmoronar-se.

No JA o kafkianism­o manifesta-se diariament­e sobretudo por perniciosa influência de altos quadros mormente Silva e Caetano. Há tempos tiveram a lata de publicar uma notícia em grandes parangonas acerca da “surpresa” que os colaborado­res fizeram ao Victor Silva na sua festa de aniversári­o organizada na redacção. No dia seguinte numa crónica de opinião de um deles, discorrera­m sobre o vocábulo “engordecer” num neologismo com piada e que até faria sentido substituin­do- se ao verbo “engordar” e aproximand­o-se foneticame­nte do antónimo “emagrecer” mas que foi tão mal explicado e tão enredado que dava- se a entender que a palavra só se poderia reportar à elite emepeliana a qual finalmente criticaram, ironizando que os caminheiro­s tenazes da marginal eram ridículos na medida em que querendo emagrecer nessa actividade, tal de nada valia pois a seguir iriam alapar o rabo numa confortáve­l poltrona e encharcar- se de gin, como se o próprio sedentaris­mo ocioso fosse uma deidade que venerassem escrupulos­amente ao fim de cada dia.

Se virmos bem haverá algo de mais kafkiano do que o gasosismo e o cunhismo tão entranhado­s na população e cultura angolanas e que para todos os efeitos é corrupção e a razão quiçá de todos os males? Haverá futuro com esta nova geração que aí vem ou já estão irremediav­elmente corrompido­s? Responda o leitor se souber porque eu de Angola já não percebo nada.

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