O FIM DA GUERRA, SEGUNDO MIA COUTO
« O 25 de Abril foi recebido em Moçambique com um sentimento misturado de alegria e apreensão. Houve várias e diferentes alegrias. Primeiro, houve a alegria genuína dos que sofreram a dupla carga do fascismo e do colonialismo. Mas houve outras alegrias. Mesmo organizações coloniais de direita emitiram comunicados saudando a chamada Revolução dos Cravos. Cinco meses depois esses colonos de extrema direita ensaiavam em Lourenço Marques ( que depois se converteu em Maputo) um golpe contra o Acordo de Paz assinado entre Mário Soares e Samora Machel. Tomaram a estação radiofónica ao som da canção ‘ Grândola Vila Morena’ de José Afonso, a mesma melodia que se convertera no símbolo do 25 de Abril. O regime colonial fascista tinha se transformado num empecilho histórico para quase todos os quadrantes políticos, da esquerda à extrema direita. A Revolução dos Cravos era como um ovo de crocodilo: poderia vir a ser macho ou fêmea de acordo com a temperatura exterior.
Tal como a alegria, a apreensão também foi múltipla. Em primeiro lugar, alguns dos militares que davam rosto à chamada Junta de Salvação Nacional eram rostos bem conhecidos de generais que tinham lutado contra os movimentos de libertação em África. Não eram, a bem dizer, os melhores cartões de visita. Alguns eram mesmo figuras sinistras da guerra, falcões da máquina militar colonial como Galvão de Melo. Outros como o general António Spínola eram adeptos de uma política colonial reformada e estavam em desacordo não com a essência do regime mas com as tácticas de perpetuação da presença portuguesa. Na verdade, os primeiros pronunciamentos dos militares da chamada Junta de Salvação Nacional em Portugal eram marcados por uma notável ambiguidade no que respeita à guerra colonial. Foi preciso uma luta sem tréguas do povo português e dos militares revolucionários do MFA para que as propostas de continuidade da política colonial fossem derrotadas. E isso levou tempo. Nas cidades de Portugal, desfilavam milhares de pessoas clamando: ‘ Nem mais um só soldado para as colónias!’. Em Moçambique, centenas de jovens moviam se no sentido oposto: atravessavam clandestinamente a fronteira para ingressarem no exército guerrilheiro. Uns não queriam ser soldados. Outros sonhavam ser guerrilheiros. Durante os meses que se seguiram ao 25 de Abril, a Frente de Libertação de Moçambique ( FRELIMO) decidiu prosseguir com os combates em todas as frentes militares. ‘ Lutamos não apenas para derrubar o fascismo em Portugal mas, sobretudo, para acabar com o colonialismo em Moçambique‘ – esta era a posição da guerrilha nacionalista. Apesar destas reservas, a queda do regime colonial fascista não podia senão ser recebida com contentamento pela Frente de Libertação de Moçambique. E por todos os outros movimentos de libertação das então colónias portuguesas. Afinal, o derrube do fascismo resultava também do seu combate abnegado. Mas no caso de Moçambique, porém, uma preocupação estratégica somava se às apreensões imediatas que já fiz referência. Em 1974, a FRELIMO tinha implantação segura nas regiões rurais de quase metade do país, sobretudo no Norte e Centro de Moçambique. Contudo, o movimento necessitava de tempo para se organizar nos centros urbanos. Pequenos núcleos clandestinos haviam sido desmantelados pela PIDE DGS logo durante toda a década de 60. A FRELIMO já tinha a simpatia dos intelectuais mas necessitava de uma inserção orgânica mais activa e organizada. O 25 de Abril surpreendeu esta estratégia de sedução nos meios urbanos. Entre os estudantes universitários de Lourenço Marques ( e eu era um deles) reinava desde 1970 um clima de contestação. Mas essa confrontação revelava bem as ambiguidades dos filhos dos colonos e dos assimilados. Uns questionavam apenas o fascismo português. Tratava se, para eles, de introduzir mudanças democráticas em Portugal que, depois, se reflectissem, nos chamados territórios do Ultramar. E por via dessa mudança pôr cobro àquilo que na sua linguagem se chamava ‘ guerra colonial’. Para outros, porém, a questão central era o colonialismo e o objectivo último da luta era a Independência Nacional. Para estes, o termo ‘ guerra colonial’ não existia. O que acontecia era uma luta armada de libertação nacional. Em Março de 1974, eu era um jornalista trabalhando como estagiário num vespertino em Maputo. Eu era um militante da Frente de Libertação e foi me pedido que abandonasse os meus estudos universitários para trabalhar num jornal da capital. Era preciso ‘ infiltrar’ ( assim se dizia) com quadros moçambicanos os órgãos de informação que estavam nas mãos dos portugueses. Um mês depois de iniciar o meu estágio sucedeu o 25 de Abril. As pessoas festejaram com alegria profunda e muita perplexidade. Aquela não era ainda a festa dos moçambicanos. Era a festa do povo português. Nós éramos apenas convidados em casa alheia. A nossa festa, o nosso 25, estava ainda por vir. E veio, um ano mais tarde, com a proclamação da Independência, a 25 de Junho de 1975. »