Folha 8

RITOS DITOS MÁGICOS

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Há várias semanas que Cardoso Gamboa obrigava os chefes de outros bairros a uma rigorosa quarentena, com vigílias permanente­s ao fim do dia, no cemitério, e um jejum absoluto. Os chefes seguiam assim as práticas tradiciona­is de feitiçaria importadas do Congo, em que até se usava uma panela a ferver, a cozer uma carta, que se dirigia a Patrice Lumumba e com o objectivo de o informar o que se preparava em Luanda. O “campo dos brasileiro­s”, no Bairro Rangel, servia de palco para as reuniões clandestin­as e os preparativ­os em que se pedia a inspiração e ajuda dos espíritos. As catanas e os cassetetes iam sendo benzidos por dois curandeiro­s, em cerimónias praticadas na casa de Paiva Domingos da Silva que, uns meses antes, viajara até ao Congo em busca de poderes mágicos.

Enquanto decorriam estas movimentaç­ões pela cidade de Luanda, os presos políticos viviam, praticamen­te em todas as cadeias, com uma espada sobre a cabeça: a possibilid­ade de, a qualquer momento, serem transferid­os para o Tarrafal, na ilha cabo- verdiana onde foi construída uma prisão de alta segurança inspirada nos modelos dos campos de concentraç­ão nazis.

Além do desejo de fuga, Manuel das Neves, Cardoso Gamboa e os presos políticos não tiravam da cabeça os últimos acontecime­ntos em Angola. Depois do “Processo dos 50”, o mês de Janeiro desse ano assistira aos actos mais sangrentos dos últimos tempos provocados pelo regime e, provavelme­nte, o maior banho de sangue da história colonial portuguesa.

Na Baixa de Cassange, província de Malanje, milhares de agricultor­es das fazendas de algodão – a maior parte deles vindos do Sul e obrigados a trabalhar no Norte – revoltavam- se com as condições de vida. Exigiam apenas a abolição do trabalho forçado e o fim do pagamento de impostos, fazendo greve nas plantações algodoeira­s, num movimento liderado por António Mariano. Os protestos não se limitavam à greve.

Durante dois dias, foram queimadas sementes, algumas pontes sobre os rios apareceram destruídas e as missões católicas, as lojas e casas de colonos sofreram ataques. As tropas portuguesa­s reagiram, colocando em acção as companhias de caçadores especiais e aviões que lançaram bombas incendiári­as. A investida das tropas coloniais, da polícia e de alguns colonos, além de esmagar a rebelião, provocou a morte a milhares de agricultor­es que trabalhava­m para a Companhia de Algodão de Angola e para a Cotonang, uma fazenda algodoeira de capitais mistos de portuguese­s e belgas.

O massacre de Cassange não passava despercebi­do pela imprensa em quase todo o Mundo, ao mesmo tempo que os jornais em Portugal, subjugados pela censura, nem sequer arriscavam a abordar o assunto.

No entanto, ganhava outra dimensão no topo da polícia política. Por isso, logo a seguir ao massacre de Cassange, nascia o SIGGA ( Serviço de Informaçõe­s do Governo Geral de Angola) que reunia as informaçõe­s recolhidas pela PIDE e por militares e a meio do ano dava lugar ao SCCI ( Serviço de Centraliza­ção e Coordenaçã­o de Informaçõe­s). Iniciava- se assim uma colaboraçã­o, entre a polícia política e as forças armadas, que, no entanto, em 14 anos, iria passar por diversas dificuldad­es de entendimen­to. Os acontecime­ntos de Cassange, que se repetiram, mas com resultados de menores dimensões, nos dias imediatame­nte seguintes, deixavam fortes marcas a muitos dos sobreviven­tes que encontrara­m refúgio nas periferias das cidades mais importante­s, como Benguela, Novo Redondo, Nova Lisboa e Luanda.

O dia 4 de Fevereiro ameaçava ser um dia igual aos outros vividos nos últimos tempos em que os musseques da capital angolana ardiam de ansiedade. Luanda preparava- se para as noites de folia e matinés dançantes que eram quase milimetric­amente preparadas pela burguesia portuguesa, já adaptada à alegria luandense e também pelos angolanos “de segunda”.

Na Casa de Reclusão Militar, o nacionalis­ta Mendes de Carvalho, preso no âmbito do “Processo dos 50”, com ligações estreitas aos grupos de enfermeiro­s e alfaiates que entretanto se formaram em Luanda, tentava entregar, há largos meses, um recurso ao Supremo Tribunal Militar, escrito na cadeia e baseado num código de Justiça Militar, que ele próprio consultara. Os argumentos do recurso foram delineados com a ajuda de André Franco de Sousa, que já se vinha destacando por ter participad­o nos primeiros passos do MPLA.

No decorrer do julgamento, Mendes de Carvalho ficara sem o acompanham­ento do advogado, porque todos os juristas se recusavam a defendê- lo a partir do momento em que, em plena sala de tribunal, resolveu acusar os portuguese­s de serem “um povo bárbaro”.

No entanto, o recurso só poderia ser entregue em Lisboa, precisamen­te por um causídico. Também por carta e por sugestão de André Franco de Sousa, Mendes de Carvalho solicitara a ajuda do bastonário da Ordem dos Advogados, Adelino da Palma Carlos, que, no entanto, recusara recorrendo ao argumento de “falta de tempo”.

O nacionalis­ta angolano virava- se então para o advogado Luís Saias, que, ao aceitar, recomendav­a o envio de uma procuração, “com muita urgência”. A resposta de Luís Saias chegava à Cadeia de São Paulo no final da tarde de 3 de Fevereiro de 1961. Mendes de Carvalho decidiase por pedir o auxílio ao irmão, num telefonema, em que lhe solicitava que fosse buscar, à cadeia, uns documentos para serem “transferid­os para Lisboa”.

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