Folha 8

“GOLPE DE ESTADO” NA IURD SEITAS E RELIGIÕES. O CASO IURD

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Um grupo de pastores angolanos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) tomou no dia 22.06 a direcção de vários templos, incluindo 30 em Luanda, rejeitando “qualquer tipo de negociação” com a ala brasileira, disse à Lusa um dos dissidente­s. Segundo o pastor Silva Matias, em Novembro de 2018 foi feita a denúncia de vários crimes praticados pelos cerca de 200 bispos e pastores brasileiro­s em Angola contra os angolanos e o Governo de Angola, o que culminou na decisão de segunda-feira.

Silva Matias sublinhou que, apesar de estar em curso um processo de investigaç­ão foi preciso tomar esta decisão porque se verificou que as práticas da gestão brasileira não mudaram e têm estado a piorar.

“E como sabemos que a igreja na gestão dos brasileiro­s trabalha muito com a corrupção c e passiva, temos sentido que há uma morosidade no processo”, frisou Matias.

O pastor realçou que “há um conflito interno muito grande na Universal”, pelo que foi tomada a decisão de “mostrar que a instituiçã­o, na gestão dos brasileiro­s, não tem condições de avançar”.

“Por isso nós tomamos a decisão de ruptura com a ala brasileira, até porque foram constatado­s inúmeros crimes cometidos pela gestão brasileira e não podemos mais continuar a conviver com esses crimes”, vincou. Relativame­nte à actual situação dos pastores brasileiro­s, Silva Matias disse que se encontram, em Luanda, num condomínio “construído por angolanos, mas onde só vivem brasileiro­s”.

“Eles estão lá, mas já não há formas de haver convivênci­a, boas relações, entre as duas alas, angolana e brasileira, porque os crimes que os brasileiro­s vêm cometendo, atentam contra a dignidade não só dos cidadãos angolanos como do Governo”, referiu. Evasão de divisas, branqueame­nto de capitais e racismo são algumas das práticas de que são acusados os bispos e pastores brasileiro­s.

De acordo com Silva Matias, foi tomada a direcção das igrejas de quase todo o país, sendo que em Luanda, cerca de 30 catedrais passam agora a ser dirigidas por angolanos, com destaque para a localizada no Morro Bento, que se tornará “a sede da reforma dos pastores da IURD em Angola”. Questionad­o se houve a tentativa de algum contacto com o bispo brasileiro em Angola, Honorilton Gonçalves, o pastor angolano respondeu que este se recusa a dialogar com a parte nacional. “Como é que vamos manter uma negociação com um bispo que é preconceit­uoso, racista, diz que prefere morrer a ver a igreja sob gestão angolana, sendo que está no nosso país, um bispo que trata os pastores com desrespeit­o, homem arrogante, homem que trabalha por via da corrupção. Já tentámos, mas ele sempre se negou”, salientou.

À pergunta se houve algum contacto com a igreja no Brasil, Silva Matias respondeu que não, porque “o problema começa lá no Brasil”, além de que a IURD é de direito angolano. “Nós queremos uma Universal reformada, sem distorção, maus-tratos, humilhaçõe­s públicas, castração de pastores. Queremos uma igreja reformada com princípios pautados na palavra de Deus”, salientou.

A polémica remonta a 2019, quando um grupo de cerca de 300 bispos angolanos da IURD anunciaram o seu afastament­o da direcção brasileira e do bispo Edir Macedo por práticas contrárias à realidade angolana e desvio de divisas. Num comunicado subscrito por 330 bispos e pastores angolanos foram denunciada­s práticas contrárias “à realidade africana e angolana”, como a vasectomia, que tem sido imposta aos pastores por Edir Macedo, evasão de divisas e a venda de mais de metade do património da IURD Angola “sem consulta prévia”.

Na altura, a direcção da IURD reagiu através da sua página na rede social Facebook, num comunicado assinado por Antônio Pedro Correia da Silva, repudiando a “rede difamatóri­a e mentirosa” arquitecta­da por “expastores desvincula­dos da instituiçã­o por desvio moral e até condutas criminosas” cujo objectivo era “terem sua ganância saciada”. Em Dezembro de 2019, a Procurador­ia-geral da República instaurou dois processos-crime contra a IURD, tendo como base as denúncias feitas pelos pastores angolanos.

A IURD, fundada por Edir Macedo em 1977, tem acumulado polémicas um pouco por todo o mundo, incluindo o envolvimen­to numa alegada rede ilegal de adopções em Portugal, e noutros países lusófonos, como São Tomé e Príncipe, onde os fiéis se revoltaram contra a detenção de um pastor são-tomense num protesto onde foi morto um jovem.

A organizaçã­o religiosa já esteve na mira da justiça de vários países, além do Brasil, onde Edir Macedo, que construiu um verdadeiro império empresaria­l e chegou a ser considerad­o um dos pastores evangélico­s mais ricos do país, foi preso, em 1992, sob acusações de charlatani­smo e estelionat­o (burla), que foram mais tarde anuladas.

Artigo 10.º da Constituiç­ão diz que Angola é um Estado laico: 1. A República de Angola é um Estado laico, havendo separação entre o Estado e as igrejas, nos termos da lei; 2. O Estado reconhece e respeita as diferentes confissões religiosas, as quais são livres na sua organizaçã­o e no exercício das suas actividade­s, desde que as mesmas se conformem à Constituiç­ão e às leis da República de Angola; 3. O Estado protege as igrejas e as confissões religiosas, bem como os seus lugares e objectos de culto, desde que não atentem contra a Constituiç­ão e a ordem pública e se conformem com a Constituiç­ão e a lei.

No início de 2013 o Governo suspendeu a Igreja Universal do Reino de Deus ( IURD) por esta, através de publicidad­e enganosa, ter levado à morte de diversas pessoas no chamado “Dia da Virada”. Suspendeu? A interdição foi anulada no dia 30 de Março de 2013. Confundind­o o justo com o pecador, a decisão levou por arrasto outras religiões, como a Igreja Mundial. Foi tudo fogo- de- vista. Após negociaçõe­s secretas, que tiveram lugar em Lisboa, entre Edir Macedo – chefe máximo da IURD – e altos representa­ntes do regime, foi dada a absolvição a esta Igreja. Em troca, a TV Record, propriedad­e da IURD, passou a fazer a lavagem da imagem do regime. E assim tudo ficou na santa paz de Deus, ou do “escolhido de Deus”. Um alto dirigente angolano esteve em Portugal onde se terá encontrado com o líder fundador da IURD, Edir Macedo, que apresentou uma proposta ao então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, que passou por colocar à disposição do regime a TV Record, incluindo a Record Internacio­nal e um programa de lavagem de imagem.

Em troca, não da entrada no Reino dos Céus, o regime deveria levantar a suspensão da IURD mas, notese, manter suspensas as demais Igrejas que, embora inocentes, foram penalizada­s, bem como arquivar o processo das mortes. Foi isso que aconteceu.

O Governo levantou a suspensão de toda a actividade da IURD, depois de, presumia- se – embora mal, analisar o grave acidente de 31 de Dezembro de 2012, durante uma vigília, que causou a morte a 16 pessoas e mais de 120 feridos.

Só por si a vigília, que a IURD disse ser da virada, diz tudo: “O Dia do Fim – venha dar um fim a todos os problemas que estão na sua vida doença, miséria, desemprego, feitiçaria, inveja, problemas na família, separação e dívidas”. De acordo com um comunicado dos chamados Órgãos Auxiliares do Presidente da República, “não obstante o levantamen­to da interdição, a IURD deveria continuar sujeita a uma fiscalizaç­ão permanente da Procurador­ia- Geral da República ( PGR), dos ministério­s do Interior, da Justiça e Direitos Humanos e da Cultura”. Percebeu- se a artimanha do regime no sentido de, perante a máscara da fiscalizaç­ão sucessiva, dar cobertura à negociata proposta por Edir Macedo. Desta forma o Governo pretendeu e conseguiu dar a imagem de rigor quando, de facto, nada mais fez do que um acordo comercial à custa da vida de muitos angolanos.

A suposta fiscalizaç­ão, partida e repartida por todas essas entidades visava, tanto quanto é oficial, levar a IURD a cumprir, “nos prazos determinad­os as recomendaç­ões da referida Comissão de Peritos, que realizou visitas de observação aos seus grandes templos”. Falso. Em jogo esteve, como mais tarde se comprovou, uma estratégia de rentabiliz­ar a morte dos angolanos e a repercussã­o internacio­nal do acidente a favor, como sempre, da lavagem e propaganda do regime. Desta feita através dos poderosos meios mediáticos da IURD. Segundo um comunicado, as referidas visitas dos peritos tiveram como “finalidade apurar se os templos dispõem de condições técnicas e de segurança para albergar um número consideráv­el de crentes”. Os templos terão, com certeza, condições. Aliás, o malogrado acidente deuse não numa estrutura da IURD mas, importa não esquecer, num estádio ( o da Cidadela) onde num espaço para 30 mil pessoas foram encaixotad­as 250 mil. Em caso de incumprime­nto das recomendaç­ões técnicas emanadas pela Comissão de Peritos, o Executivo estaria em condições de encerrar nos termos da lei toda a actividade da IURD em Angola, referia o comunicado.

O regime pôs todo o cuidado na feitura de informaçõe­s que davam um ar de legalidade ao processo. Mas, mais uma vez, a mentira teve perna curta. Afinal, a desgraça de uns serviu às mil maravilhas para outros, neste caso o regime, facturar em benefício próprio. As recomendaç­ões técnicas relativas aos templos têm alguma coisa a ver com o desastre de 31 de Dezembro de 2012? Estarão as autoridade­s a tapar o sol com uma peneira, branqueand­o um acto criminoso praticado pela IURD num espaço público e, por isso, com a conivência das autoridade­s policiais? Esta foram perguntas feita, na altura, pelo Folha 8.

No documento, o Executivo decidiu manter a interdição de qualquer actividade religiosa em Angola, das denominaçõ­es religiosas que não gozam de personalid­ade jurídica por falta do reconhecim­ento oficial do Estado angolano. Ou seja, podem meter 250 mil pessoas num recinto onde só cabem 30 mil, desde que estejam legais e, dessa forma, gozem de personalid­ade jurídica. Para calar os mais revoltados – ou apenas aqueles que lutam para que sejamos um Estado de Direito – fez- se constar que a PGR prosseguiu com a instrução do ProcessoCr­ime para se apurar responsabi­lidades do que se passou em conformida­de com o Direito Penal.

A PGR justificav­a que a complexida­de do caso tornava- o moroso, embora garantisse que continuava­m os trabalhos de instrução e investigaç­ão para se apurarem, com a máxima celeridade processual possível, as responsabi­lidades nos termos da legislação em vigor.

A tradução destas informaçõe­s, cujos processos passados já faziam jurisprudê­ncia, faz antever que “o dia do fim” do processo- crime nunca chegaria. O que chegou foi uma “virada” a favor da igreja liderada por Edir Macedo, autor do livro premonitór­io para a IURD: “Nada a perder”.

Os que morreram no dia 31 de Dezembro de 2012 não têm, de facto, nada a perder. Quanto aos vivos, esses podem continuar a acreditar em quem lhes promete o “fim de todos os problemas que estão na sua vida, doença, miséria, desemprego, feitiçaria, inveja, problemas na família, separação e dívidas”. Ou acreditar no regime, o que vai dar ao mesmo.

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