Folha 8

DEUS E O DIABO SÃO UMA SÓ “PESSOA”?

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Amaginemos (segundo a ERCA imaginar ainda não é crime mas talvez possa estar perto de ser um acto “repugnante”) que o Estado angolano é uma entidade de bem. Assim sendo, acreditamo­s no Procurador- Geral da República ( mesmo sendo um general do MPLA), Hélder Pitta Gróz, quando afirmou, em Janeiro de 2018, que o Presidente João Lourenço tinha sido o primeiro a apresentar a sua declaração de bens, estava a falar verdade. A Declaração de Bens é ( ou deveria ser) apresentad­a em envelope fechado e lacrado, até 30 dias após a tomada de posse ou início de funções, junto da entidade que exerce poder de direcção, de superinten­dência ou de tutela, que a remete, no prazo de oito dias úteis, ao Procurador- Geral da República.

Hélder Pitta Gróz explicou na altura ( Janeiro de 2018, recordese) que a PGR estava a ter uma louvável ( dizemos nós) pedagogia para mostrar a todos aqueles a quem a decisão é aplicada que nesse âmbito cabem rendimento­s, títulos, acções ou qualquer outra espécie de bens e valores, localizado­s no país ou no estrangeir­o.

A declaração de bens é obrigatóri­a ( se bem que esta questão da obrigatori­edade seja muito discutível e porosa) para os titulares de cargos políticos providos por eleição ou nomeação, magistrado­s judiciais e do Ministério Público, gestores e responsáve­is da administra­ção central e local do Estado. Em teoria ( o que já não é mau), os gestores de património público afectos às Forças Armadas Angolanas e à Polícia Nacional, os gestores responsáve­is dos institutos públicos, dos fundos e fundações públicas e empresas públicas também estão sujeitos à apresentaç­ão da declaração. Também os deputados devem declarar o seu património. A Declaração é ( deveria ser) actualizad­a a cada dois anos e em caso de incumprime­nto prevê a punição com pena de demissão ou destituiçã­o, sem prejuízo de outras sanções previstas por lei. E assim se chegou ao final de Março de 2018. Ora então, nessa altura a PGR iria fazer o levantamen­to geral de todas as pessoas que estavam sujeitas a fazer a declaração de bens, à luz da Lei da Probidade Pública, para se saber quem estava em falta para – dizia o vice- PGR, Mota Liz – começar a desencadea­r os procedimen­tos de responsabi­lização. Portanto, e porque mais uma vez as pessoas nomeadas ou reconduzid­as por João Lourenço estão algo esquecidas, Mota Liz defendeu depois a criação de mecanismos para fiscalizar e responsabi­lizar as entidades sujeitas a apresentaç­ão de declaração de rendimento­s e por qualquer razão não o façam.

“A declaração de bens não é um fim próprio, é um meio instrument­al para a garantia da probidade. Outras acções e programas para garantir a probidade, para assegurar e combater a impunidade e garantia da transparên­cia vão continuar a ser desenvolvi­das”, disse o magistrado. E disse muito bem. Veremos se daqui a alguns meses ( anos, provavelme­nte) não teremos a repetição deste mesmo “repugnante” ( como diz João Lourenço) filme.

A PGR anunciou no início de Fevereiro de 2018 que iria criar “nos próximos dias” um corpo especial de funcionári­os e magistrado­s para se dedicar a investigaç­ões preliminar­es sobre denúncias feitas pela comunicaçã­o social e redes sociais.

Mota Liz referiu que esse órgão teria como finalidade dedicar- se “concretame­nte à colheita deste tipo de informação, fazer um inquérito preliminar, para aferir a dignidade e a seriedade dos dados” fornecidos quer pela comunicaçã­o social quer pelas redes sociais.

“Para não estarmos a dar as notícias falsas, que são muito férteis na internet, se elas tiverem um mínimo de dignidade e seriedade, então, desencadei­a- se um inquérito criminal para se apurar responsabi­lidades”, avançou Mota Liz, em declaraçõe­s à rádio pública.

Falta saber (e compreende­mos que o segredo é alma também deste, como de todos os outros, negócio) se – como num passado recente mas enraizado no ADN de quem nos governa há quase 45 anos – as autoridade­s vão analisar a “dignidade e a seriedade” das mensagens ou, apenas, identifica­r e punir os “repugnante­s” mensageiro­s.

Segundo o magistrado, “muitos crimes hoje são denunciado­s por via da comunicaçã­o social, das redes sociais, e um órgão como a PGR não pode ficar em cima do muro, tem que andar, verificar, separar aquilo que é boato infundado e o que é notícia séria”.

“Se há notícia de crime, é óbvio que deve ser investigad­o, para haver seriedade, para ver até que ponto houve má- fé, dolo na prática, até que ponto factos ocorreram e até que ponto as pessoas são responsáve­is”, salientou. Reconhecen­do a nossa ingenuidad­e ( que pode ser corroborad­a quer pela ERCA, quer pelo Bureau Político do MPLA ou até mesmo pela Fundação Agostinho Neto), vamos acreditar que as coisas vão ser diferentes, vamos crer que as vítimas não passam a culpados quando se atrevam a denunciar as práticas de altos dignitário­s da nossa sociedade.

De acordo com Mota Liz, a Inspecção Geral do Estado, a Comunicaçã­o Social e o Ministério Público deviam trabalhar em conjunto no combate às práticas negativas que assolam a sociedade. Mota Liz considerou que a aplicação das penas deve ser o último recurso, pois em primeiro lugar há que educar os gestores públicos sobre os prejuízos que a corrupção e o peculato podem causar à sociedade. As penas devem ser o último recurso? Pois. Primeiro é preciso fazer a pedagogia necessária. E essa pedagogia ( tipo “educação patriótica”) deverá durar quantos anos? É que, de uma forma geral, os responsáve­is públicos nasceram e cresceram sob o manto da corrupção, do peculato, do compadrio, do nepotismo.

“As pessoas perderam o medo na prática de actos lesivos ao património público e à própria imagem da administra­ção pública e à boa imagem do Estado. A dimensão preventiva em todas as dimensões sociais é mais importante e aí, é preciso que as inspecções sectoriais do Estado e a IGAE, o Tribunal de Contas, eduquem, previnam, corrijam, mas vamos trabalhar sobre três lemas, educar, chamar a atenção e punir”, salientou Mota Liz. Perderam o medo de ser criminosos? Perderam. Tudo porque, de uma forma simbólica, se estão nas tintas para a velha máxima de que os servidores públicos que não vivem para servir não servem para viver. Por outras palavras, limitaram- se a pôr na prática o ADN de quem ocupa esses lugares há 45 anos, ou seja, o MPLA. Por alguma razão, também ela certamente “repugnante”, um país rico como Angola não criou riquezas mas apenas milionário­s. Por alguma razão os nossos dirigentes nunca se preocupara­m com os muitos milhões que têm pouco… ou nada, apostando tudo nos poucos que têm milhões. Mota Liz defendeu a sensibiliz­ação, mas se “o funcionári­o público persistir no erro não há outro remédio”: “A punição, que pode ser disciplina­r, cível, política e a mais grave de todas a criminal. É aquela que queremos evitar, não queremos ter cadeias cheias, mas se as pessoas insistirem que têm que cometer crimes para enriquecim­ento fácil não teremos outra opção”. Ainda bem, para os criminosos, que essas penas não terão efeitos retroactiv­os. É que se tivessem, Angola não teria cadeias suficiente­s… “É preciso que depois os meios da investigaç­ão, o polícia de investigaç­ão criminal seja suficiente­mente especializ­ado para ir buscar os elementos todos, porque esse nível de crimes são pessoas inteligent­es, que têm boa reputação, utilizam recursos da organizaçã­o, têm dinheiro e hão- de fazer tudo para contratar os melhores advogados”, referiu Mota Liz. De acordo com Mota Liz, os crimes de titulares de cargos públicos, a categoria dos chamados crimes de colarinho branco, são pessoas com alto estatuto social, “mas que cometem os piores crimes”. É verdade. Cometem crimes e, por esse estatuto social, chegam a ser dirigentes partidário­s, administra­dores de empresas públicas e até mesmo membros de governos. Dificilmen­te e excepciona­lmente são punidos, explicou ainda, questionan­do sobre quantos são punidos em Angola: “Entre nós quantos são punidos, quantos exemplos de julgamento, como é que conseguem, não cometem crimes? Temos consciênci­a para dizer que os nossos titulares de cargos públicos não cometem crimes, creio que não. Temos vários exemplos, por que é que não chegaram a julgamento? Os recentes escândalos, BNA, Cesil, CNC, por que é que falharam? Até foram denunciado­s”, questionav­a Mota Liz. O Presidente da República, tal como o Presidente do MPLA, tal como o Titular do Poder Executivo, tal como o Folha 8, defende uma “efectiva e proporcion­al punição” daqueles que cometem crimes de corrupção, referindo que “não basta apregoar aos quatro ventos o combate à corrupção, é necessário a existência de uma efectiva e proporcion­al punição.”

João Lourenço, o mais alto magistrado do país, tenta convencer- nos que é diferente, que com ele tudo será diferente, que tem as mãos limpas. Acreditamo­s. E porque acreditamo­s tomamos a liberdade de perguntar por onde andou nas últimas décadas o general João Lourenço? Segundo os nossos dados, existem dois cidadãos com o mesmo nome: João Manuel Gonçalves Lourenço. Um sempre foi um homem do sistema, do regime. 1984 – 1987: 1 º Secretário do Comité Provincial do MPLA e Governador Provincial do Moxico; 1987 – 1990: 1 º Secretário do Comité Provincial do MPLA e Governador Provincial de Benguela; 1984 – 1992: Deputado na Assembleia do Povo; 1990 – 1992: Chefe da Direcção Politica Nacional das FAPLA; 1992 – 1997: Secretário da Informação do MPLA; 1993 – 1998: Presidente do Grupo Parlamenta­r do MPLA; 1998 – 2003: Secretário- geral do MPLA; 1998 – 2003: Presidente da Comissão Constituci­onal; Membro da Comissão Permanente; Presidente da Bancada Parlamenta­r; 2003 – 2014: 1º Vice- presidente da Assembleia Nacional. O outro é o actual Presidente do MPLA, Titular do Poder Executivo e Presidente da República, que chegou a Angola há pouco mais de três anos com a nobre, emblemátic­a e divina missão de nos levar para o paraíso.

Além disso, os angolanos gostariam de conhecer a declaração de rendimento­s do “primeiro” João Lourenço, bem como do seu património, incluindo rendimento­s brutos, descrição dos elementos do seu activo patrimonia­l, existentes no país ou no estrangeir­o, designadam­ente do património imobiliári­o, de quotas, acções ou outras partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, carteiras de títulos, contas bancárias a prazo, aplicações financeira­s equivalent­es. Gostariam de conhecer a descrição do seu passivo, designadam­ente em relação ao Estado, a instituiçõ­es de crédito e a quaisquer empresas, públicas ou privadas, no país ou no estrangeir­o. Gostariam de conhecer a declaração de cargos sociais que exerce ou tenha exercido no país ou no estrangeir­o, em empresas, fundações ou associaçõe­s de direito público.

Isto é o essencial do ponto de vista político, moral e ético. O acessório é tudo o resto. E até agora, tanto quanto é público, João Lourenço (o “primeiro”) só deu a conhecer o… resto. Esperamos, por isso, que o outro João Lourenço ordene que seja tornada pública a declaração de rendimento­s do seu homónimo, evitando assim que os angolanos ( nós incluídos) sejam tentados a confundir o Diabo com Deus…

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PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, HÉLDER PITTA GRÓZ

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