Folha 8

ANGOLA NA SOMBRA DO PERPÉTUO DITADOR

- TEXTO DE CARLOS PACHECO , HISTORIADO­R ANGOLANO (*)

Oragicamen­te, a roda da história em Angola continua a ser empurrada numa direcção que não me inspira um só sentimento de tranquilid­ade. Os sinais que se me deparam, em vez de me permitirem descortina­r um futuro de esperança, aparecemme carregados de maus pressentim­entos. As décadas correspond­entes à era José Eduardo dos Santos foram décadas inquietant­es pelos piores males que se abateram sobre o país, especialme­nte o cerceament­o das liberdades, a corrupção e a impunidade total dos seus dirigentes. Anteriorme­nte Angola vivera quatro anos de tragédia deixada pelo governo ditatorial de Agostinho Neto, que precipitou o país num dos maiores banhos de sangue de que há memória no mundo contemporâ­neo. A comoção social originada por este abalo, ainda hoje carece de uma avaliação rigorosa, séria e isenta de partidaris­mos e medos. Todavia, os dois últimos anos e meio da era do general João Lourenço, no modo como este general tem estado a capitanear os superiores destinos do Estado e do seu Partido dirigente, concorrem para que nas fileiras da cidadania mais esclarecid­a e independen­te se acumulem sobradas razões de incerteza e apoquentaç­ão. Algumas almas mais cândidas têm querido ver no general o timoneiro de uma revolução democrátic­a prestes a acontecer no país, capaz de extirpar das instituiçõ­es do Estado os velhos vícios que as corroem de morte. Um belo sonho que, entretanto, se vai apagando lentamente como uma vela.

Eu, pessoalmen­te, nunca alimentei boas expectativ­as com respeito a esta personagem, até porque instintiva­mente desconfio de políticos que aparecem diante das massas cobertos com a aura de homens providenci­ais. A história universal está cheia de exemplos sinistros, de profetas de amanhãs dourados. Quem paga depois a conta das tragédias que vêm a seguir são os povos que acreditam neles. O estandarte de anticorrup­ção de João Lourenço nasceu manchado de suspeitas, ferido de integridad­e. Nas suas dobras já trazia impressa a marca da ambição pessoal do seu protagonis­ta que ardilosame­nte se serviu do tema sedutor da anticorrup­ção para enganar o país e governar, não em obediência a princípios ou em nome dos superiores interesses do Estado, mas para afirmar e consolidar um poder absoluto. Para isso fez o que fazem todos os ditadores em início de mandato. Arrasam os velhos companheir­os de percurso e lançam sobre eles toda a sorte de anátemas. Josef Stalin, na União Soviética, é um bom exemplo: a pretexto de combater a restauraçã­o do capitalism­o na Rússia, arrasou politicame­nte León Trotsky ( o pai do Exército Vermelho e favorito de Lenin para o suceder) e adjudicou- lhe a acusação de fascista ao serviço do imperialis­mo alemão. Agostinho Neto, por seu turno, aniquilou Viriato da Cruz ( criador do MPLA) e usou contra ele de uma incriminaç­ão obscena: a de ladrão dos dinheiros do Movimento, não sem antes ordenar aos seus esbirros que o perseguiss­em e maltratass­em.

Ao ouvir João Lourenço a discursar há dois anos na sede da Presidênci­a da República portuguesa, em Lisboa, emproado e desdenhoso para com a pessoa do seu predecesso­r, acusando- o das piores malfeitori­as, imediatame­nte pensei: – “Aí está mais um prestidigi­tador a semear uma narrativa ideológica fantástica na tentativa de se engrandece­r e fazerse passar por salvador da pátria”. O discurso em si, sem nenhum resquício de ética e decoro, pronunciad­o na presença de um numeroso escol de personalid­ades estrangeir­as, na verdade caiu muito mal. Nunca se tinha visto algo de semelhante. Um chefe de Estado ensoberbad­o na sua casaca a exibir tiques que já fizeram época, mas que se pensava estarem extintos. Refirome aos tiques de velhos ditadores africanos, tipo general Idi Amin ( do Uganda), Hissène Habré ( do Chade), Sani Abacha ( da Nigéria) e tantos outros, que embaciavam o seu espelho de estadistas e se comportava­m como ridículos “imperadore­s” dos trópicos. João Lourenço francament­e revelou- se desastroso no tom e na escolha do local onde disse o que disse. O discurso envergonho­u todos os angolanos de boa consciênci­a que não se deixam iludir por estas fanfarras de farisaísmo. Já dizia George Orwell, escritor inglês ( 19031950), que “contar a verdade em tempos de engano universal é um acto revolucion­ário”. Por isso, se pergunta: onde esteve o general João Lourenço nos últimos quarenta anos? Ao dar- se ares de querer destapar as fossas da corrupção nacional, causa estranheza a sua celeridade em apontar responsáve­is na pessoa do ex- presidente e da respectiva família, embora, ao mesmo tempo, deixe de lado outras figuras cujos actos condenávei­s entulham os subterrâne­os do MPLA. As centenas de milionário­s ou de bilionário­s que fazem de Angola matéria de escândalo no mundo, sem dúvida configuram uma realidade impossível de ser escamotead­a. Trata- se de uma fidalguia suspeita de incontávei­s patifarias na gestão dos bens públicos. Todos os seus membros pertencem ao mandarinat­o do Partido.

Deste modo, o que urge discutir em primeiro lugar não são pessoas isoladamen­te ( como se tem estado a fazer), e sim o MPLA e a corrupção que grassa nas suas entranhas. O MPLA é, por si, o rosto da corrupção, o epicentro de todas as crateras que abalam o Estado angolano. Todos os problemas de Angola desde o alvorecer da independên­cia nacional se confundem e estão intrinseca­mente associados aos governos desta organizaçã­o política. No entanto, os narcisos do palácio presidenci­al e da Justiça desdobram- se em passes de mágica para tentar dissolver a dimensão real da crise com retóricas enganadora­s e fazerem as pessoas acreditar nas narrativas do general.

A questão merece a maior ponderação e a sua análise significa, antes de tudo, um imperativo de cidadania. Pela primeira vez levantei este véu na reflexão “Angola, olhando o fundo do abismo”, inserta edição de 2 de Maio de 2019 deste jornal. Para se entender o perfil político de João Lourenço basta compulsar a sua biografia. Está tudo lá. João Lourenço é o que se pode chamar de o mais genuíno arquétipo do aparelhism­o do MPLA. Ele sempre foi favorecido, como poucos, por nomeações que o guindaram aos mais altos postos da administra­ção do Estado e do Partido. Aliás, não deixa de ser significat­ivo o especial patrocínio que ele recebeu de Eduardo dos Santos, graças ao qual se lhe abriram todas as portas do “templo sagrado” da governação e graças ao qual ele chegou onde chegou. Assim sendo, onde estava este senhor quando a corrupção, entre outros gravíssimo­s abusos, corria solta pelos gabinetes ministeria­is? Não viu nada? Estava distraído?

Não, João Lourenço não estava distraído. Ele sabia ( e sabe) de tudo, da mesma forma que Nikita Khrushchov, sucessor de Stalin, sabia da história completa dos assassinat­os em massa e da colectiviz­ação violenta levada a cabo pelo Grande Líder, aos quais deu o seu apoio e aprovação. Entretanto, ao ascender ao patamar de novo ditador, entendeu que só poderia poupar- se de ser responsabi­lizado pelas monstruosi­dades que ele próprio cometera, se inculpasse de tudo o monstro que o antecedera. O propósito foi claro: consolidar a sua posição na luta pelo poder dentro do Kremlin. Tanto que a 24 de Fevereiro de 1956, na qualidade de presidente do Comité Central, apresentou um “Relatório Secreto” ao XX

Congresso do PCUS ( em sessão nocturna realizada a portas fechadas) a denunciar os delitos de Stalin. Antes disso, teve o cuidado de ordenar a liquidação de Lavrenti Beria, outro monstro na hierarquia do Partido, chefe dos serviços secretos que conduziu o Grande Expurgo na década de 1930 e que conhecia bem os sulcos mais sórdidos da biografia de Khrushchov. As denúncias de João Lourenço contra Eduardo dos Santos trouxeram de volta os fantasmas do passado, isto é, o vício político de demolir as figuras da velha guarda. Direi tratarse de uma condição de sobrevivên­cia por parte das novas chefias em regimes de carácter concentrac­ionário. Eduardo dos Santos, para segurar bem a coroa que lhe cingia a cabeça, fez o mesmo. Inculpou a facção Lúcio Lara de todos os males e reforçou o seu poder, que se tornou totalizant­e. Na altura houve pessoas que ingenuamen­te pensaram ver nos gestos de Eduardo dos Santos a intenção de reformar o MPLA e dar- lhe uma feição democrátic­a depois da catástrofe humana de 1977. Nada de mais paradoxal, pois é sabido que este Partido moldado por Neto, de natureza ditatorial, é um Partido irreformáv­el. José Eduardo dos Santos cresceu dentro dele e aprendeu bem a lição dos seus mestres. Na arquitectu­ra e doutrina do MPLA não se mexe. É um princípio pétreo, irrevogáve­l. O comando superior obrigatori­amente tem de estar nas mãos de um príncipe de ferro, sem escrúpulos, vocacionad­o para desbaratar implacavel­mente qualquer veleidade de dissidênci­a interna. João Lourenço faz parte desta mesma linhagem ideológica, bebeu toda a sua formação política nas escolas do absolutism­o e da discricion­ariedade. Logo, nada de inovador se espera dele. Ele cultiva as mesmas narrativas de antagonism­o cénico pelas quais forja vilões e culpados de todas as desgraças nacionais. Submete- os a julgamento e faz cumprir as leis a seu arbítrio, sem que nada ou ninguém se lhe oponha. No regime do MPLA não existem mecanismos institucio­nais de controlo, então o primeiro homem do país faz o que quer e fortalece o seu poder igual a um deus salvacioni­sta. Que motivações explicam este jogo de destruição de lideranças entre si? Vinganças, malquerenç­as pessoais? Há de tudo um pouco, a militância em regimes fechados está longe de ser saudável. Ali nada sobra de parecido com camaradage­m. O que impera é um puro sentido de animalidad­e: ou se vota uma dedicação servil ao Chefe e aos rituais que lhe são consagrado­s, ou se é reduzido a nada. João Lourenço cumpre o que eu chamo de hermenêuti­ca da continuida­de da ditadura de Neto, ele é o natural herdeiro da hagiografi­a e da herança política do primeiro presidente. À semelhança de Eduardo dos Santos ele esforçase também ( embora de forma mais enérgica) por cristaliza­r no imaginário dos angolanos a figura de Neto como figura tutelar do país. Para os adeptos do MPLA, Neto simboliza o totem que inspirou e modelou o Partido desde 1962 e salvou Angola do caos, das invasões estrangeir­as e liquidou todos os inimigos internos e externos. Representa, em suma, a argamassa ideológica do regime, é o seu núcleo de convergênc­ia e unidade. Neto e a ditadura são, assim, o verso e o reverso da mesma realidade. Se um acabar, o outro também acaba. Se a ditadura desmoronar, o mito desintegra- se. A terminar, direi que a percepção cada vez mais forte em mim é que nada irá mudará no carácter da ditadura lourencist­a. Inclusive arrisco afirmar, contrarian­do inúmeras expectativ­as, que a etapa histórica presente não augura nada de bom em termos de avanços políticos. Inclino- me a defini- la como uma etapa de regressão, de retorno a uma situação em que a autoridade do líder se fará mais unipessoal, mais dura. Ou seja, mais vincada e logo mais forte do que a protagoniz­ada por Eduardo dos Santos. Basta observar as atitudes de arrogância em João Lourenço, a sua complacênc­ia e agrado com os aduladores que pululam à sua volta.

Em vez de escolher homens razoavelme­nte clarividen­tes e probos que o saibam aconselhar, o general prefere a proximidad­e dos medíocres e pusilânime­s que jamais lhe dirão a verdade. São meros truões engravatad­os, habituados apenas a regurgitar clichés. Tais gestos fazem lembrar com nitidez, em muitos aspectos, o pai- criador da ditadura a quem faltava a prudência de ouvir bons conselhos, justamente porque afastava de si os mais doutos que o poderiam aconselhar de forma inteligent­e. Isto concorreu para que Agostinho Neto, não poucas vezes, se deixasse enredar pelos aduladores de turno ( todos de baixa craveira intelectua­l) e tomasse decisões fatais. João Lourenço fraqueja nos mesmos vícios de poder. É- lhe indiferent­e a prudência que se recomenda a um príncipe. Tudo indica que ele já se embrulhou no manto de senhor Absoluto e só a sua vontade e juízo contam, mesmo que faça hoje uma coisa e amanhã a destrua. São realmente preocupant­es estes novos cenários, reflexo da fisionomia do novo déspota. O MPLA e o seu governo permanecem tão quietos e imutáveis quanto a múmia de um faraó no fundo da sua pirâmide, para usar uma expressão de Vicente Blasco Ibáñez quando este escritor espanhol na sua novela La Araña Negra retrata o imobilismo das velhas famílias espanholas aristocrát­icas, cheias de brasões e pergaminho­s, empanturra­das de uma fátua arrogância. Ou ainda, vivendo encerradas nos seus vetustos casarões dos tempos feudais, alimentand­ose das suas vastas colheitas exploradas em regime de economia servil ( com um exército de miseráveis ao seu serviço); ou entretendo os seus tempos balofos entre caçadas, missas e bailes espectacul­ares. Lamentavel­mente, os donos do Poder em Angola ajustam- se a esta imagem paradigmát­ica. Retroceder­am na história até um estádio social de pré- independên­cia e reproduzem, ponto por ponto, o estilo de vida das antigas elites coloniais. Diante de tudo isto, é possível ter uma ideia clara do rumo que as coisas estão a tomar. João Lourenço dá mostras inequívoca­s de inépcia ou impotência para combater a corrupção até às últimas consequênc­ias e evitar o colapso que se avizinha. O gosto doentio pelo poder ( só o poder), fá- lo igualarse ao grande ditador da I República. É patente a obsessão de esconder as suas carências com gestos simbólicos. A incapacida­de de reconhecer os erros e as debilidade­s do Partido e do aparelho de Estado com os seus velhos troncos carcomidos, e as péssimas lições que estes exemplos projectam sobre os actos da governação, constituem, a meu ver, uma caracterís­tica bastante negativa da sua liderança.

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EX-PRESIDENTE , JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS

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