Folha 8

Novembro de 2018

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“Estávamos a brincar na rua, com os nossos brinquedos, quando vimos a polícia a disparar à nossa frente. Estavam a dar tiros contra as pessoas que estavam a marchar na estrada grande. Éramos dez crianças e fugimos para casa. Deixámos os nossos brinquedos na rua”, conta Teresa Adolfo, de 10 anos, depois de ter presenciad­o o tiroteio de duas horas que no dia 17 de Novembro de 2018 aterrorizo­u a vila de Cafunfo.

Forças combinadas das Forças Armadas Angolanas ( FAA), Polícia de Intervençã­o Rápida ( PIR), Polícia de Guarda Fronteira ( PGF) e agentes da ordem pública ( Polícia Nacional) interviera­m para dispersar uma marcha pacífica de cerca de 300 simpatizan­tes ( em 2021 o número é o mesmo, 300) do Movimento do Protectora­do LundaTchok­wé, uma organizaçã­o que reivindica a autonomia da região das Lundas, “como a Escócia no Reino Unido”.

Neves Bihihia dirigiase à farmácia, situada na via principal ( Estrada Grande), quando foi atingido no pé direito por um agente identifica­do como sendo da PIR. Na altura, os correspond­entes comunitári­os do Maka Angola deslocaram- se ao Hospital Regional de Cafunfo, onde foram informados sobre o estado crítico do Neves Bihihia. O paciente foi isolado e estava sob forte guarda policial.

Pouco antes das 8h00, os manifestan­tes partiram do Bairro da Elevação rumo à vila de Cafunfo, com efectivos militares e policiais no seu encalço. “As FAA, que inicialmen­te estavam a seguir os manifestan­tes, não aguentaram e chamaram a PIR, a PGF e a polícia de ordem pública”, relatou o pastor protestant­e Martinho Rafael, de 37 anos.

“Cercaram os manifestan­tes nas imediações da estrada principal da vila de Cafunfo e aí iniciaram os tiros por volta das 8h00. Os homens e as mulheres do protectora­do dispersara­m a tempo”, referiu o mesmo pastor.

Segundo Martinho Rafael, que levava a sua motorizada à oficina, “os militares e polícias, de vergonha, começaram a prender inocentes e a espancá- los de forma brutal porque ‘desconsegu­iram’ prender os homens do protectora­do”. O pastor conta ainda ter testemunha­do o brutal espancamen­to de um adolescent­e seu conhecido por efectivos da PIR, mas cujo nome lhe escapa, que fugia dos tiros e nada tinha a ver com a manifestaç­ão. “Tinham de espancar e prender alguém para incluir no relatório deles. Não detiveram os do protectora­do que estavam na manifestaç­ão”, asseverou.

O activista cívico Salvador Fragoso disse que o tiroteio de duas horas “fez lembrar a população de Cafunfo sobre a época da guerra civil. Não havia nada que justificas­se duas horas de tiros. Contra quem? Estamos com muito medo”.

Sabino Manuel, um conhecido comerciant­e local que se encontrava à porta do seu estabeleci­mento na hora do tiroteio, foi um dos 14 elementos detidos. “O irmão Sabino é um comerciant­e bem conhecido, até pelos oficiais e agentes da Polícia Nacional. Nós, activistas locais, também conhecemos muito bem este homem e sabemos que nunca teve simpatias pelo movimento regionalis­ta de José Mateus Zecamutchi­ma, o líder do Protectora­do da LundaTchok­wé. O irmão Sabino é de Benguela”, denuncia Jordan Muacabinza. Com o anúncio antecipado da manifestaç­ão, a vila de Cafunfo acordou em estado de sítio.

“Parece que estamos em situação de guerra aqui em Cafunfo. As ruas estão militariza­das. Não há livre circulação de pessoas. Os populares continuam a ser intimidado­s”, afirmou Jordan Muacabinza. Segundo Salvador Fragoso, “os homens do Protectora­do avisam que vão fazer uma manifestaç­ão e, muitas vezes, nem saem do quintal, onde ficam a entoar cânticos, em frente da casa de um dos líderes, André Zende, ou num espaço aberto. Mas isto é suficiente para colocar todas as forças de defesa e segurança em estado de alerta máximo e de guerra”. Na altura o Maka Angola contactou por via telefónica o comandante da Esquadra de Cafunfo para ouvir a versão oficial sobre o tiroteio: “Para mais informaçõe­s, ligue ao comando municipal”, e desligou abruptamen­te o telefone.

A 26 de Junho de 2017, durante a repressão de uma manifestaç­ão do Protectora­do no Cuango, um dos seguranças do chefe de Operações do Comando Municipal do Cuango, João Mazanga, matou Pimbi Txifutxi, de 35 anos, com um tiro no abdómen, quando este saía da igreja, de bíblia na mão. Nesse dia, as forças policiais e os militares feriram vários cidadãos e efectuaram dezenas de detenções.

Cafunfo é a única região onde o governo recorre sempre às FAA para reprimir manifestaç­ões, por mais insignific­antes que sejam.

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