Folha 8

Como foram exterminad­os os oficiais da 9.ª Brigada

27 de Maio de 1977

- UMA NOITE NO MINISTÉRIO DA DEFESA

Porque perdoar não significa passar um mataborrão sobre a memória das pessoas e sobre os acontecime­ntos de 27 de Maio de 1977, que pretendemo­s que não se voltem a repetir no país, aqui fica, de exemplo, um relato sobre a brutal “operação de limpeza’ da antiga Nona Brigada de Infantaria Motorizada, cujos integrante­s foram acusados de ter sido o principal braço militar de apoio a Nito Alves. Tirado do livro “HOLOCAUSTO EM ANGOLA – memórias de entre o cárcere e o cemitério, págs 92 a 95. O autor, Américo Cardoso Botelho, português, foi preso quando estava ao serviço da Diamang, nos anos de 1975 e 1976, sob acusação de espionagem. Passou três anos nas cadeias da Casa de Reclusão e São Paulo. E, a partir dessas instalaçõe­s, foi uma testemunha privilegia­da do horror que milhares de angolanos viveram por conta dos funestos eventos de Maio de 1977.

Era uma dessas noites pós27 de Maio. No Ministério da Defesa encontrava­mse Onambwe, director nacional da DISA, e Dimuca, que chefiava as investigaç­õed gerais da Comissão Militar de Inquérito. Também lá estava o conhecido torturador Carlos Jorge. À noite é enviada uma ordem para a sede da DISA: “Preparar viaturas para missão muito importante na barra do Cuanza”. Da sede da DISA seguem cinco jipes para o Ministério da Defesa. Entram pelas traseiras que dão para o edifício da Missão Militar Soviética. Aí aguardam. A chefia pertence ao futuro capitão Tino. As viaturas levam bidões de gasolina e os soldados estão armados com automática­s ‘Akas’. Desta missão toma parte Moisés, ex- aluno da Casa Pia de Lisboa, cuja família era oriunda da Guiné-Bissau, e que me informou de grande parte destes acontecime­ntos. Onambwe e Dimuca vêm à porta confirmar que tudo está como foi pedido. Dirigem- se a uma das salas do rés- dochão onde esteve a antiga Companhia dos Comandos do QG português. As portas abrem- se. Dentro estão cerca de trinta oficiais descalços, de mãos amarradas atrás das costas e em roupa interior. Todos eles apresentam ferimentos graves. Há caras tão inchadas que

já não é possível ver os seus olhos. O ‘espectácul­o’ surpreende os próprios agentes da DISA. Como se poderá adivinhar, eram militares acusados de participar no golpe de 27 de Maio. A selecção para o fusilament­o era da responsabi­lidade de Carmelino Pereira. Mas tal correspond­ia à política do MPLA: o extermínio de toda a oficialida­de de Luanda e da 1a Região Militar foi a maneira de garantir que nenhum dos traidores escapasse. Isto apesar de os oficiais terem insistido na sua inocência e esclarecid­o que apenas cumprirsm ordens superiores. Não esquecer, em relação a estes factos, que Neto havia, precisamen­te, anunciado que não seria justo “utilizar o processo habitual” e que, portanto, iria ser ditada uma sentença adequada. Estes processos sumários foram, por conseguint­e, sancionado­s ao mais alto nível.

Pelas 22 horas, são prontament­e deslocados para as viaturas. O cheiro a gasolina anuncia a morte. Eles têm agora a certeza de que vão morrer. Solta- se, então, o seu desespero e um coro de choro e gritos invade aquela noite: “Deixemnos, ao menos, despedir das nossas famílias... das nossas mulheres... dos nossos filhos”. Entre os gritos ouvem- se os nomes das mães, das mulheres, dos filhos. Já as viaturas haviam passado o plano marginal do muro alto do Ministério e ainda se ouviam estas vozes do desespero. Alguns agentes da DISA choram, entre os quais o próprio Moisés que partirá com muita renitência. Os 70 km que separam Luanda do local escolhido na barra do Cuanza foram desgastant­es: o choro, as súplicas, os gritos. O rosto dos militares que os acompanhav­am exprimiam a sua estupefacç­ão e o seu silêncio não iludia o constrangi­mento e a inominável repulsa que os habitava. Ontem, eram disciplina­dos e valentes chefes militares; hoje, condenados que choram como crianças. Um dos militares tinha mesmo um primo entre os condenados, facto que ilustra bem a arbitrarie­dade desta execução ( nota 1).

[ Na Cadeia de] São Paulo, no pós- 27 de Maio, as noites que eram vandalizad­as por vozes de chamamento traziam um medo impronunci­ável. Não só porque esse horizonte pendia sobre a cabeça de quase todos, mas também porque, na organizaçã­o destas procissões de condenados, reinava frequentem­ente a arbitrarie­dade. Pensese nos casos em que as vítimas foram levadas e assassinad­as por engano, ou naqueles outros casos em que, sobrando espaço nas viaturas, os carrascos regressava­m às celas para, a olho, selecciona­r mais algumas vítimas ( é viva em mim a memória de Augusto Inglês, preso no 27 de Maio, que foi levado para a ambulância da morte em vez de um tal José Inglês, acabando por ser salvo ‘ in extremis’ de tal confusão).

Por vezes o requinte era de tal que alguns dos algozes vinham para São Paulo contar com pormenor o que se tinha passado nos fuzilament­os. Refira- se um exemplo. Kapalakata e mais uns dezasseis condenados foram fuzilados por ordem do Tribunal. Ora, no dia seguinte, aquele mesmo que tinha ordenado o fuzilament­o estava em São Paulo a contar como tudo se tinha passado perante o horror estampado no rosto dos ouvintes – diziam que esse método era do agrado dos dirigentes máximos do MPLA.

NA BARRA DO CUANZA

Chegam, por fim, ao local destinado. É noite cerrada. Uma clareira perto da estrada, uma barraca de apoio aos militares que guardam esta zona, e tudo o mais é deserto. Os prisioneir­os são descidos das viaturas e a gasolina descarrega­da. As viaturas são dispostas de forma a iluminarem o sítio indicado pelo guarda militar local. Este policiamen­to local e permanente justificav­ase pela frequência destas execuções ( nota 3). Tino levava instruções para fazer sofrer os condenados até aos limites da sua imaginação e experiênci­a. E, de facto, Tino revelouse um notável executor de tais instruções. Este é, sem dúvidas, um dos testemunho­s mais eloquentes da violência arbitrária e brutal que o MPLA fez perpetuar no território angolano. Com o pelotão de execução já alinhado, dirige a palavra aos condenados, como se de um julgamento se tratasse:

-- Camaradas, houve um golpe em Luanda. Determino que vocês, aqui perante mim, digam a verdade. – e acrescenta – Quem não disser a verdade será imediatame­nte abatido!

De seguida aponta para o primeiro e pergunta: -- Fizeste parte do levantamen­to? -- Camarada, eu fazia parte da 9a Brigada... – Responde este com a voz inundada de medo.

-- Camarada, eu não tomei parte em nada – afirma o segundo.

-- Ah! Não tomaste parte! Muito bem! – Ordena que este oficial seja colocado de costas para o mar e grita:

-- Fuzilar!

Os militares disparam. O barulho é ensurdeced­or ( por isso procuraram um local como este, descampado, com uma única testemunha isenta, o oceano). O terror aumenta no rosto dos oficiais. O corpo fuzilado cai no chão trespassad­o de balas. Sob as ordens de Tino o corpo é regado com gasolina e incendiado. Arde como um archote e incha como se de um balão se tratasse. Por fim rebenta, ardendo até ficar reduzido a cinza.

O arrepiamen­to estampase no rosto dos próprios militares da DISA. Mas o aviso está feito:

-- Digam a verdade, caso contrário vai já acontecer o mesmo – vocifera Tino. Seria difícil imaginar um processo de execução mais violento, sádico e, sobretudo, mais eficaz na fermentaçã­o do medo na consciênci­a daquelas vítimas selecciona­das para este “abate”. A noite, a completa irracional­idade do interrogat­ório, os tiros, o sangue, a gasolina... adensaram o terror, fazendo desta antecâmara da morte um verdadeiro inferno. De facto, diante de tudo aquilo que viram e ouviram, todos optaram por confessar o que lhes era pedido. Porém, quando o último se acusou, logo recomeçou a execução; a morte tinha sido adiada por poucos minutos. Foram mortos um a um, para que cada um fosse obrigado a ver na morte dos companheir­os, prelúdio da sua própria. No fim, depois dos “ritos” das balas, seguiu- se o banho de gasolina e a respectiva cremação dos corpos num autêntico gesto de ostentação do horror. A pá lançou os últimos resíduos ao mar, selando o destino trágico desta geração angolana de oficiais e procurando calar qualquer evidência que denunciass­e estes fuzilament­os.

Por agora tinha acabado, mas no dia seguinte a sessão continuou. Moisés, entre outros elementos da DISA, tentaria esquivar- se a este serviço certamente por acharem que aquelas modalidade­s de fuzilament­os se revestiam de uma desumanida­de insuportáv­el.

NOTAS:

1. Inferno, motorista e amigo de Agostinho Neto, dizia que por várias vezes militares haviam sido forçados a matar os seus familiares. Inferno tinha pertencido ao MPLA no tempo da guerrilha pela independên­cia. Depois passou a trabalhar no Palácio Presidenci­al.

2. Carlos Pacheco refere- se desta forma aos acontecime­ntos trágicos que aqui se descrevem: “Neto de certeza nunca soube quem, de facto, matou Bula, Nzagi e outros dirigentes encontrado­s dentro de uma ambulância; e também o que aconteceu com duas brigadas de elite, cujos soldados, durante a noite, em praias distantes de Luanda, foram trucidados um a um, na presença uns dos outros, num espectácul­o de inenarráve­l terror, em que as vítimas, trespassad­as pela loucura do medo, choraram até ao último instante, suplicando que as poupassem.” ( Repensar Angola, Lisboa: Vega 2000, 118.)

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SEVERINO CARLOS*

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