A IDEOLOGIA VIOLENTA DO MPLA
Mesmo tratando- se, como se sabe, de uma questão sensível para alguns estudiosos que porfiam humanizar o rosto da guerrilha, não se pode deixar de levar em conta os acontecimentos terríveis que salpicaram a realidade e reconhecer que a ideologia da violência no MPLA (e noutros movimentos) contra civis, parafraseando o filósofo esloveno Slavoj Žižek, esteve sempre presente, agora mais do que nunca, na sua plena invisibilidade[ 5]. Do imenso rol de testemunhos de camponeses que colectei e analisei para encontrar neles relações de semelhança e marcas de verosimilhança, cito o depoimento de Saloxi Dumba, agricultor, que vivia em Sadikongue, sobado Chicunza ( no distrito do Moxico, sector 3 da zona C da 3. ª Região), que confirmou a série ininterrupta de tormentos sofridos pelos habitantes das aldeias africanas. Segundo este aldeão, o MPLA intimidava o núcleo populacional a que ele pertencia e constrangia as pessoas a abandonar os respectivos kimbos ( aldeias nativas com casas construídas de paus e cobertos de argila ou barro) e a refugiarse no grotão das matas, na divisa dos rios Luela e Carilongue, este último afluente da margem direita do Quembo. Lá constrangia- se a população sob a ameaça das armas a cultivar mandioca e outros géneros alimentícios e a entregar uma boa parte da produção aos rebeldes. A esta injunção dá- se o nome de imposto sobre a colheita. Quem não obedecesse era morto. Foi o que sucedeu com o marido e os irmãos de Viemba Manhambe, natural de Capui ( sobado Nhamia Boma, no Moxico) que não se dobraram à vontade dos guerrilheiros que lhes exigiam comida e os ameaçavam. Por conta desta coragem, a família foi toda despachada à bala para o outro mundo de forma impiedosa e sem um mínimo de consideração pela sua condição etno- social. Ao invadir outras aldeias no posto administrativo de Gago Coutinho, o mesmo destacamento de insurrectos não se coibiu de desapossar os seus habitantes de todas as reservas alimentares acumuladas com tanto sacrifício; ao mesmo tempo que lhes cobravam dinheiro e abatiam a tiros de espingarda ou a golpes de faca os recalcitrantes na mira de intimidar os restantes moradores das sanzalas. Realmente à luz de dezenas de casospadrão expostos nos meus estudos, os grupos armados nem sempre souberam proteger os núcleos comunitários mais débeis. Antes de tudo, conduziam- se como uma organização militar assassina que sequestrava e espoliava os bens dos agricultores e matava os homens e a mulheres num exercício de orgia criminal tão gritante que, por vezes, é difícil ao historiador distinguir a realidade da ficção. As duas faces no decorrer das pesquisas confundem- se a todo o instante. Ofensivas militares directas contra a ldeamentos acompanhadas de roubos a civis converteramse deste modo em demonstrações alarmantes e corriqueiras consumadas com um acinte de crueldade sem limites, sem excluir o rapto de pessoas para transporte de cargas, tal qual a prática dos tempos da escravidão.
A estes horrores poderse- ia chamar de novelas negras da luta armada. Em lugar de libertar, de “tomar o céu de assalto, como diria Karl Marx”[ 6], e apontar as armas contra os baluartes de dominação do Estado colonial, isto é, contra a sua máquina burocráticomilitar, os insurrectos assaltavam o seu próprio povo, numa guerra infinita com inúmeros desdobramentos e frentes, sendo a guerra contra as comunidades rurais uma das que mais chama a atenção. Uma configuração do que chamo de quinta guerra, confundida com outras guerras, num total de sete. A título de curiosidade, cito as guerras intestinas em cada formação guerrilheira, incendiadas por conflitos de poder entre os seus mandões. Ou as guerras travadas pelas forças irregulares umas contra as outras ( as mais constantes, por sinal), ou as guerras contra os meninos e as meninas sujeitos a processos de militarização e escravização sexual. Com estes registos pretende- se demonstrar não terem sido nada conspícuos os exemplos das três facções independentistas. Uma boa parte da história destes movimentos pouco ou nenhuma relação teve com o carácter de uma epopeia genuinamente libertadora, como repetidas vezes se pretende fazer crer. Tais acções decorriam sob o impulso de indivíduos ambiciosos e sem escrúpulos, desprovidos de etiquetas políticas recomendáveis e tãopouco sem nenhuma estatura moral e ética. Houve excepções, é verdade, na pessoa de comandantes de elevado perfil humano, moral e revolucionário. Todavia, no fim da guerra poucos sobreviveram. Quem não logrou escapar ao cutelo dizimador da repressão interna, tombou fuzilado às mãos de Neto, de Savimbi e Holden Roberto.