LIBERTADORES LADRÕES
Com que direito aqueles combatentes, fantasiados de libertadores, se interpunham violentamente no caminho dos camponeses, roubando- lhes os haveres e a vida? A rebelião, como força oposta à presença colonial portuguesa, porventura conseguia justificar para si mesma aquela violência, aquele terror? Como explicar uma guerra levada a cabo contra o seu próprio povo? Por que se matavam civis, pessoas inocentes e, mesmo assim, se acreditava ser uma causa justa? Será que todo o mal praticado pelas guerrilhas se tornara legítimo diante do modus faciendi do inimigo? Estaria a insurgência a perder a decência? Eis aqui alguns tópicos aliciantes para futuras matérias de estudo.
O rastro de sujeira e de sangue que cobre os treze anos de luta armada no geral é, pois, assombroso e encerra uma história de assassinatos, perseguições e a destruição sistemática do ser humano. Paradoxalmente a maior vítima de violências foi a massa rural, a mesma que o colonialismo levou à degradação total, mas que os grupos insurgentes ajudaram a aviltar ainda mais.
Os portugueses indiscutivelmente também incorreram em comportamentos criminosos, de consequências danosas para a vida humana colectiva, visto terem cometido atrocidades semfim contra as populações civis. A sua máquina de guerra socorreu- se de armas e tácticas militares não permitidas pelo Direito Internacional dos Conflitos Armados. A aviação despejava bombas sobre alvos ilegítimos sem ter em conta a protecção de vítimas inocentes numa clara violação às normas que regem a condução das hostilidades estabelecidas nas Convenções de Haia de 1899 e 1907. Matavam- se crianças “como se fossem perdizes”; batiam- lhes com paus e despedaçavamlhes o cérebro e logo a seguir tingiam as árvores com os seus pedaços. Episódios bárbaros que, de resto, jamais foram reconhecidos ou certificados pelas autoridades lusas nem antes nem depois do 25 de Abril de 1974 com o golpe dos capitães. De todas as cenas conhecidas registe- se uma, quiçá a mais monstruosa, que foi protagonizada por uma unidade militar de ocupação no Lucusse ao abrir fogo sobre um casal de camponeses indígenas que fugia apavorado e deixou para trás uma filha de tenra idade que brincava com um instrumento de lavrar a terra. Demenciados “pela guerra delirante”, na feliz expressão do poeta espanhol Miguel Hernández[ 7], os soldados brancos precipitaramse sobre a pobre menina e esfrangalharam- na a golpes de enxada. A seguir cobriram os restos do corpo com capim e, por último, transformaram o cadáver numa fogueira. Na Chitamba, aldeia do Moxico, a tropa lusitana não só submeteu os civis pela força das armas, como queimou dois homens vivos, uma mulher e uma criança de dois anos. Estamos diante do absoluto da abjecção. Do pior desconcerto da alma humana. O mesmo se poderá dizer do acto cometido por uma força militar portuguesa no momento em que regressava ao seu aquartelamento em Cangamba ( no Moxico) no dia 11 de Junho de 1967. Ao transpor uma aldeia apoiante dos rebeldes, os soldados dizimaram todos os seus habitantes. Nem os graduados se eximiram de participar do massacre. Algumas figuras de topo da hierarquia militar do MPLA, entretanto, tomadas de ódio incontrolável por estes festins de crueldade da tropa portuguesa, chegaram mesmo a predicar que a única resposta à altura seria abandonar a mística da luta guerrilheira, que se dizia ser democrática e popular, e enveredar por uma odiosa luta racial entre brancos e negros. “Olho por olho, dente por dente”, assim o pleiteavam algumas vozes mais delirantes. Felizmente este perigoso tecido de ideias não se impôs dentro da organização de Agostinho Neto. Aconteceram, sem dúvida, alguns episódios lamentáveis, de um comandante da 3. ª Região em Outubro de 1968 que matou uma mulher negra, grávida, por esta viver maritalmente com um homem branco. Seja como for, foram poucos os casos desta natureza, nada comparáveis às barbaridades de cunho racial que viraram moeda corrente no seio das demais organizações insurgentes. Reconheça- se, no entanto, que a maioria dos guerrilheiros e respectivas lideranças não conheciam a realidade global do mundo com as suas intrincadas nuances. Não conheciam sequer o que lhes estava mais próximo: a preciosa ajuda prestada por comerciantes e industriais portugueses na área do Buçaco ( sul do Cassai), ou nas áreas do Luculo e Léua ( e noutras áreas) que subministravam aos combatentes irregulares, de forma directa ou através de chefes africanos tradicionais, o necessário em géneros alimentícios e roupas. Ou ainda o papel, extremamente arriscado, de alguns administradores que se aventuravam a proteger as populações e a permitir que os camponeses refugiados nas matas continuassem a pagar o imposto por intermédio dos seus sobas. Os exemplos são incontáveis.