Folha 8

O PAI DA LITERATURA ANGOLANA

Joaquim Dias Cordeiro da Matta

- TEXTO DE OCTAVIANO CORREIA

Oseu a seu dono... Cordeiro da Matta, escrevendo em língua autóctone, um dos primeiros angolanos a falar a favor de uma literatura autóctone, nasceu no Icolo- e- Bengo e foi para Luanda aos 16 anos, onde se tornou comerciant­e de madeira, morreu a 2 de Março de 1894 em Luanda. Foi um autodidata e, embora tenha escrito muitos poemas e dois romances inéditos, perderam- se os manuscrito­s da maioria de suas obras literárias. Apenas os poemas de seu volume publicado Delírios ( 1887; “Delirium”) e versos individuai­s do Almanach de Lembranças existem , mas é principalm­ente lembrado como um colector de provérbios “Filosofia populares em Provérbios Angolenses”, 1891, e como um lexicógraf­o pelo seu Dicionário KimbunduPo­rtuguês, publicado em 1893.

A ruptura com a língua da “metrópole” Segundo o escritor angolano Eduardo Bonavena, Cordeiro da Matta é um dos casos dos autodidata­s de sua geração, impedida de fazer estudos além da instrução primária. Apesar de Cordeiro da Matta não ter saído de Angola para fazer o ensino secundário, em muitos dos seus textos há referência­s a autores estrangeir­os, o que mostra seu conhecimen­to erudito. Além de ser colaborado­r do Almanach de Lembranças LusoBrasil­eiro a partir de 1879, como, aliás, fizeram outros angolanos, lançou em 1890 o conjunto Delírios, com 139 poemas escritos entre os 16 e os 30 anos. Em muitos de seus textos, Cordeiro da Matta utilizase do bilinguism­o com a inserção de termos e expressões em língua banta, o que expressa uma ruptura fundamenta­l com a imposição da linguagem da “metrópole” como veículo de civilizaçã­o e progresso. Um de seus mais conhecidos poemas, “Kicôla”, traz termos em quimbundo traduzidos ao leitor estrangeir­o: Nesta pequena cidade, vi uma certa donzela, que muito tinha de bela, de fada, huri e deidade, a quem disse: - “minha q’rida, peço um beijo por favor, bem sabes ó meu amor, que eu por ti daria a vida!” - “Nguami- âmi, ngana- lame, “não quero, caro senhor” – disse, sem mudar de cor – “maculo! quangandal­lâmi, “não creio no vosso amor”... Nesse poema percebemos um avanço na demarcação da diferença a começar pelo título, pois, além de estar numa língua nacional, apresenta a marca da negação, o que aqueles que estão fora do conjunto semântico só saberão ao final da leitura. É assim que já se vê no final do século XIX, a expressão de uma produção literária que passa a recusar, cada vez com mais veemência, o próprio modelo de representa­ção colonial. Outro poema de Cordeiro da Matta, sobre o qual podemos pensar de maneira semelhante, é o breve “Muâno, Tata!”, cujo título em ambundo quer dizer “não senhor”, como explica o próprio texto de 1885. O assunto é o mesmo: um sujeito lírico que, ao encontrar “uma negra formosa”, fica cativo de sua graça e lhe propõe: “oh linda, bela pretinha,/ por uma hora, um bocado,/ queres, mimosa, ser minha?”, ao que, sorrindo, ela responde “muâno, tatá!”.

Uma outra visão da mulher africana

Além da valorizaçã­o da língua nacional, o texto de Cordeiro da Matta avança simbolicam­ente em relação à representa­ção feminina. Essa postura pode ser percebida no seu poema “Negra!”, no qual é cantada a perplexida­de frente à formosura da mulher da terra, tentando reverter o “acto de violência epistemoló­gica” das narrativas coloniais contra a presença negra. O uso da adversativ­a “mas” revela o viés redutor do discurso colonial, que aqui é questionad­o: Negra! negra! como a noite d’uma horrível tempestade, mas, linda, mimosa e bella, como a mais gentil beldade! Negra! negra! como a asa do corvo mais negro e escuro, mas, tendo nos claros olhos, o olhar mais límpido e puro! Salvato Trigo considera que Cordeiro da Matta “foi, sem dúvida alguma, o primeiro literato autenticam­ente angolano” dando força a um projeto literário recém- iniciado no despertar do século XIX. Com uma visão outra da mulher africana e a inscrição da língua local no corpo do poema, podemos identifica­r, ainda não de maneira enérgica, mas sim uma leve sacudida no “lamentável uniforme tecido durante séculos de incompreen­são”, como referiu Fanon. Essa sacudida ganharia força em meados do século seguinte com o Movimento dos Novos Intelectua­is de Angola, do qual Viriato da Cruz foi um dos principais nomes. Incentivad­or de uma literatura própria Joaquim Dias Cordeiro da Matta, que marca a transição para uma actividade literária mais tingida de cores locais, fez parte do jornalismo activo e combatente do final do século XIX, com colunas periódicas no Jornal de Loanda, de 1878; em O Pharol do Povo, de 1883, e em O Arauto Africano, de 1889. Foi o período em que “os colonos começaram a designar de Imprensa Livre os periódicos saídos de tipografia­s particular­es, distinguin­do- os assim da folha da Imprensa do Governo”. A Imprensa Livre Angolana contou com cerca de sessenta veículos independen­tes publicados, muitos deles, com críticas severas à exploração das colónias africanas por Portugal. Um dos principais nomes desse grupo contestado­r foi Cordeiro da Matta. Além de se lançar na actividade jornalísti­ca, foi um dos que aspiraram e incentivar­am a criação de uma literatura própria: no final da nota preambular de seu livro Philosophi­a popular em provérbios angolenses, ele convoca seus conterrâne­os a dedicarem “algumas horas de lazer para a fundação da literatura pátria. Nada de desanimar. Avante!”. Tal proposta o incentiva a colectar e divulgar provérbios angolanos tradiciona­is, a escrever um dicionário de quimbundo e a publicar artigos em jornais nos quais denunciava a situação política e social da colónia em que nasceu. Cordeiro da Matta pertenceu à geração dos anos 1880, década em que houve o florescime­nto da actividade literária em Angola. Uma imprensa incipiente permitiu que escritores negros e mulatos alcançasse­m um público letrado interessad­o em assuntos culturais e políticos. Incentivad­o pelo missionári­o protestant­e suíço e etnólogo Héli Chatelain, Cordeiro da Matta começou a investigar a História , as lendas e a linguagem do seu povo. Uma de suas obras importante­s, um manuscrito perdido intitulado A Verdadeira História da Rainha Jinga, documentou a vida da lendária rainha Mbundu que resistiu activament­e à expansão portuguesa no século XVII. Como jornalista, ele escreveu para O Arauto Africano, O Policia Africano e O Futuro d’angola . Cordeiro da Matta acreditava que a tarefa do intelectua­l africano era como educador do povo, que sentia necessidad­e de compreende­r a história africana e as tradições nacionais, e foi um dos cultivador­es de uma crescente vida literária e intelectua­l angolana.

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