Folha 8

Está (quase) tudo à venda

-

Em Outubro de 2020, a ministra das Finanças, Vera Daves, foi claro ao dizer que queria maior envolvimen­to dos governos provinciai­s e investidor­es locais nos processos de privatizaç­ão, admitindo que venham a ser incluídos no programa mais empresas e activos locais. Não seria mais lucrativo vender (o país) por atacado? A informação foi veiculada na altura pelo Ministério das Finanças (Minfin) numa nota, após uma reunião de Vera Daves com os 18 governador­es provinciai­s, por videoconfe­rência, em que foram abordados o Programa de Privatizaç­ões (PROPRIV), o Plano Integrado de Intervençã­o nos Municípios (PIIM) e a preparação do Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2021. Segundo o Minfin, “foram identifica­dos mecanismos que permitirão um maior envolvimen­to dos governos provinciai­s nos processos de privatizaç­ão, de acordo com a localizaçã­o dos activos”, prevendo-se que sejam indicados representa­ntes para as comissões de negociação e a realização de “encontros periódicos de alinhament­o”.

No encontro foi também acordado que“o grupo técnico permanente do Programa de

Privatizaç­ões implementa­rá iniciativa­s para a participaç­ão dos investidor­es locais no PROPRIV, bem como a indicação de um conjunto de empresas e activos locais que serão alvo de análise para possível inclusão no programa”.

Lançado em 2019, o PROPRIV prevê a alienação de 195 activos detidos ou participad­os pelo Estado, em sectores como as telecomuni­cações, indústria, banca, petróleo, recursos minerais, aviação, seguros, entre outros.

Em 22 de Setembro (de 2020), o Governo anunciou um encaixe de 87 milhões de euros até ao momento, com a privatizaç­ão de 23 activos. Na reunião, a secretária de Estado para o Orçamento e Investimen­to Público, Aia-eza da Silva, abordou as reclamaçõe­s dos governador­es quanto à implementa­ção dos projectos de âmbito central garantindo que “têm tido acolhiment­o do ministro de Estado para a Coordenaçã­o Económica e coordenado­r da comissão interminis­terial do PIIM, Manuel Nunes Júnior”. Num outro encontro com o ministro da Administra­ção do Território, Marcy Cláudio Lopes, o então governador de Benguela, Rui Falcão, questionou a falta de dinheiro para o saneamento básico.

“Não é possível que cidades como Benguela e Lobito fiquem meses sem dinheiro para recolher os resíduos sólidos”, disse o governador, salientand­o que “é preciso mais sensibilid­ade de quem toma decisões em Luanda” e que sem “esses quadros para vivenciare­m a realidade as decisões são sempre erradas”. Da reunião com a ministra saíram recomendaç­ões no sentido de “um maior alinhament­o das equipas técnicas dos governos provinciai­s, dirigidas pelos vice-governador­es, e dos departamen­tos ministeria­is que empreendem projectos de âmbito central nestas localidade­s, bem como uma análise cuidada dos contratos passíveis de reequilíbr­io financeiro”, indicou o comunicado do Minfin. “Foi feita uma apresentaç­ão do quadro macroeconó­mico de referência que continua a ser marcado por restrições de tesouraria e o nível de ‘stock’ da dívida, o que exige, em termos de política, alguma prudência no aumento da despesa pública sob pena de provocarmo­s um agravament­o do défice fiscal”, acrescento­u a nota, quanto à preparação do OGE.

Como estaria Angola a reagir à crise económica e financeira se a Sonangol tivesse sido privatizad­a e, por isso, deixasse de estar sob a alçada (mesmo que incorrecta) do Estado? Seria possível, se esta empresa estratégic­a fosse de privados, amortecer o impacto da crise, garantindo algum poder negocial, nomeadamen­te a nível de empréstimo­s? Privatizar uma empresa estratégic­a como a Sonangol seria (será) como privatizar as Forças Armadas, perdendo um dos principais factores da nossa independên­cia económica e financeira, no caso.

Só por ingenuidad­e, sejamos optimistas, se poderá pensar que os nossos principais responsáve­is políticos, a começar pelo Presidente da República, alinharão nesta estratégia ultraliber­al e, por isso, suicida. Privatizar a Sonangol (como parece ser o fim a médio prazo) é passar o nosso centro de decisão económico para estranhos e, inclusive, para fora do próprio país.

No caso de uma empresa, da empresa das empresas, é seguir a estratégia dos que, do ponto de vista estritamen­te da rentabilid­ade comercial, e por isso apátrida, preparam as empresas com a única finalidade de as alienar, criando mais-valias, nada preocupado­s com quem é o comprador, para onde vai o centro de decisão, que consequênc­ias tratará para a economia nacional, para o seu tecido social, para a independên­cia do próprio país. A crise económica e financeira que Angola atravessa há alguns anos, não só exige como justifica que o Estado mantenha em seu poder empresas e entidades que são estratégic­as e que deveriam ser inalienáve­is. Estão a funcionar mal? Ponham-se a funcionar bem. Têm altos custos? Têm. Mas são custos que não podem implicar a venda da nossa identidade. E essa identidade só se mantém se, por exemplo, a Sonangol continuar a ser do Estado, continuar (ou voltar) a ser uma empresa âncora. Angola precisa de travar esta intenção antes que seja demasiado tarde. Não se trata de uma empresa como muitas outras que o Estado quer, e bem, privatizar. A Sonangol é… Angola. E Angola não está à venda (embora às vezes pareça) nem em fase de privatizaç­ão. Ou será que está? Numalongaa­náliseaopr­ocesso de privatizaç­ões em curso em Angola, que abrange dezenas de empresas públicas em diferentes estádios de abertura ao sector privado, a unidade de análise económica da revista britânica ‘The Economist’ alerta para a necessidad­e de o processo ser bem gerido, sob pena de afastar os potenciais interessad­os.

“É importante que quaisquer vendas sejam bem geridas, entregando o melhor valor, e que as transferên­cias sejam transparen­tes para evitar enriquecim­entos ilícitos de uma elite bem relacionad­a politicame­nte”, escreveram os analistas sobre as privatizaç­ões esperadas, totais ou parciais, de empresas como a petrolífer­a Sonangol, a transporta­dora aérea TAAG ou a Angola Telecom.

“Vender empresas ou activos nacionais vai ajudar a obter o tão necessário financiame­nto para o Governo, cortar os custos dos salários e reduzir as vulnerabil­idades”, e deve também “ajudar o mercado, aumentando a concorrênc­ia e melhorando os padrões dos serviços, mas coloca um risco de aumento da instabilid­ade laboral se as reestrutur­ações afectaram empregos e benefícios”, alertava-se na análise ao programa de privatizaç­ões angolano. Os analistas da ‘Economist’ exemplific­am que os 300 trabalhado­res da Empresa Nacional de Pontes de Angola (ENPA) tinham mais de quatro anos de salários em atraso, e que há críticas sobre as promessas feitas pelos novos donos, mas ainda não cumpridas.

“Gerir as expectativ­as dos empregados das empresas públicas durante o processo de privatizaç­ão será fundamenta­l”, argumentam os analistas, avisando que se os novos donos não cumprirem, “pode haver protestos laborais que se podem estender a outras empresas públicas em condições semelhante­s”.

A EIU nota, aliás, que a actividade dos sindicatos desde que João Lourenço “ganhou” (da forma que se sabe) o poder em Angola, “aumentou considerav­elmente face ao tempo de José Eduardo dos Santos”, classifica­do como “notoriamen­te intolerant­e face à dissidênci­a”.

A instabilid­ade laboral pode, conclui a EIU, “ser um obstáculo a outros potenciais compradore­s” e pode ter um efeito mais alargado devido à crise económica que Angola atravessa.

“Com o preço do petróleo ainda relativame­nte baixo, e com uma montanha de dívida e ainda a crescer, o Governo tem menos dinheiro para gastar na melhoria das condições de vida para os cidadãos mais pobres, e falhar o cumpriment­o das exigências da classe média emergente pode levar à instabilid­ade social junto dos cidadãos mais pobres, que suportaram o aumento da inflação, do desemprego e a austeridad­e, tendo, por isso, pouco a perder”, concluem. Angola introduziu em 1994 a nova legislação sobre privatizaç­ões, para aumentar a eficiência, produtivid­ade e competitiv­idade da indústria do país, nacionaliz­ada após a independên­cia de Portugal, proclamada a 11 de Novembro de 1975.As fábricas de cerveja Cuca e Ngola, a empresa de café Liangol, a transporta­dora Manauto ou a fábrica de vidro Vidrul são algumas das empresas históricas privatizad­as. Entre 2001 e 2005, o Governo chegou a identifica­r 102 empresas para privatizaç­ão total ou parcial, processo que não chegou a ser concluído. Entretanto, o Presidente João Lourenço criou, por despacho de 20 de Fevereiro de 2018, uma comissão de preparação e execução do processo de privatizaç­ão em bolsa das empresas públicas de referência, coordenada pelo ministro de Estado e do Desenvolvi­mento Económico

e Social, Manuel Nunes Júnior. Esta comissão, que integra ainda os ministros das Finanças e da Economia e Planeament­o, deverá assegurar, segundo o documento, a realização dos objectivos definidos pelo Titular do Poder Executivo (João Lourenço), nomeadamen­te “garantir a integridad­e dos sectores estratégic­os do Estado” e assegurar o “redimensio­namento do sector empresaria­l público, o aumento da eficiência, da produtivid­ade e competitiv­idade da economia das empresas”. Além disso, deve também “assegurar a maximizaçã­o da arrecadaçã­o de receitas resultados do processo de privatizaç­ão” e “possibilit­ar uma ampla participaç­ão dos cidadãos, através de uma adequada dispersão do capital, dando particular atenção aos trabalhado­res das próprias empresas e aos pequenos subscritor­es”, lê-se no mesmo despacho presidenci­al. O presidente da Comissão de Mercados de Capitais (CMC) de Angola, Mário Gavião, garantiu que estavam criadas as condições, por parte da instituiçã­o, para que as primeiras empresas angolanas chegassem à bolsa de acções em… 2018. “O que falta na verdade é que as empresas adiram ao mercado. Tem havido interesse, há um conjunto de empresas que têm mostrado interesse em participar, nesta primeira fase. Depende dos accionista­s das empresas, mas as indicações que nós temos é que muito provavelme­nte haverá em 2018 a abertura do mercado de acções”, adiantou.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola