CAPRICHO IDEOLÓGICO
Por capricho ideológico exacerbado, os libertadores tendiam a ignorar a realidade destes factos, preferiam antes alimentar o preconceito de que o inimigo, ou seja, os “porcos e rafeiros”, tinham a cara do homem de epiderme clara, o português, e não o Estado ou a sociedade capitalista colonial com as suas superestruturas ideológica, política e militar. Uma cegueira e intolerância que os impedia de reconhecer o óbvio e aproveitar a conjuntura a seu favor. Uma dessas falhas, acaso a mais evidente, tinha por sinal o facto de não tentarem perceber “as complexidades da vida sob o regime colonial” e o facto de “a maioria da população branca não gostar das Forças Armadas” e ter horror à guerra. Quem o declarou sem disfarces, preto no branco, foi um antigo subsecretário de Estado do Exército português que em Angola cumpriu uma comissão de serviço ( 1966- 1968) no posto de subchefe do Estado- Maior da Região Militar[ 8]. Efectivamente, as pessoas nascidas em Portugal, mas com larga vivência na colónia – comerciantes, industriais, artífices, agricultores, funcionários públicos e outras categorias sócioprofissionais –, jamais dissimularam, desde o início da guerra, a sua aversão pelos militares das chamadas “forças ultramarinas” enviados da Metrópole. “Não precisamos dos militares cá”, eis o tom de protesto derramado por esses cidadãos na exposição que endereçaram em Novembro de 1960 a António de Oliveira Salazar, presidente do Concelho de Ministros: “Para quê aumentar os vencimentos a uma classe inútil na vida da Província. […]?. Para quê, Excelência, esse aumento para umas figuras que levam uma boa vida, com casa, criados, etc., tudo de graça, quando se fala que a economia da Província está de rastos, e se pedem a todos os serviços máxima compressão […] nas despesas?”[ 9]. Dizendo- se arredios ( por calculismo) a qualquer movimento ou força separatista, os signatários da exposição fizeram ainda saber a Salazar da sua discordância em relação à política até então seguida na colónia: “Não estamos satisfeitos, dizemos francamente a Vossa Excelência, com a política que se está a praticar em Angola, prejudicando fortemente a nossa economia! A nossa economia pública e particular. Numa altura em que a indústria de pesca morre em Benguela depois de um investimento de capitais da ordem de meio milhão de contos, levando atrás de si o comércio, vêm centenas de colonos daí para a Cela, para “iniciarem” a colonização, quando esse dinheiro podia muito bem ser empregue na salvação dessa indústria que se estende de Benguela até à Baía dos Tigres. Esse não é o caminho certo, Excelência. Vossa Excelência estará bem avisada se mandar suspender essa invasão de paraquedistas, invasão com a qual não concorda um dos nossos ilustres economistas, senhor doutor Maia Loureiro. […]. Não precisamos dos militares, não precisamos dos colonos”[ 10]. Julgo pertinente esclarecer que esta lacuna ou intolerância nos patriotas do MPLA e nas restantes facções angolanas para entender o que se passava nos interstícios do universo colonial não foi exclusiva dessas forças. Conta o escritor Kamel Daoud que, no contexto da guerra de libertação da Argélia, a FLN [ Frente de Libertação Nacional] também se couraçou com esta visão unívoca da realidade existente. Superestimou a épica dos seus “infalíveis” muŷāhidīn [ combatentes muçulmanos] que lutavam contra os “malvados colonizadores franceses” e desprezou uma outra evidência: de que nos subúrbios das cidades não viviam só árabes pobres, esses espaços eram igualmente partilhados por franceses de condição social humilde. Além disso, no período de maior combustão da guerra houve párocos que desafiaram todos os perigos e ampararam inúmeras famílias árabes necessitadas; assim como houve “[…] soldados franceses que preferiram desertar a ter que torturar e matar”[ 11]. Leszek Kolakowski, filósofo e historiador polaco, tinha razão. O ódio étnico, individual ou colectivo nestes casos vestia “[…] uma roupagem ideológica que adquiria aparências de legitimidade”[ 12]. Uma legitimidade por vezes fomentada, quando não consentida por todas as partes beligerantes. Uma tragédia humana, assim se pode resumir esse longo período de conflito armado. Se Portugal incorreu em crimes de lesa- humanidade, as forças insurgentes não lhe ficaram atrás. Parafraseando o escritor húngaro Sándor Márai, os independentistas e os militares portugueses acobertavam dentro de si um inimigo real composto por “hipócritas mesquinhos, disfarçados de nacionalistas”[ 13]. Em vez de serem um espelho de bons exemplos, uns e outros enganados por doses opressivas de propaganda transformaram- se em trincheiras trituradoras da humanidade, oxidados na violência e na xenofobia.