Folha 8

KIXIKILA, SÓCIA E KAKEBO

- TEXTO DE JOÃO FERNANDO ANDRÉ*

Enquanto campo das humanidade­s ligado à produção, à distribuiç­ão e ao consumo de bens e de serviços nas sociedades do homo sapiens, a economia tem práticas que diferem até certo ponto de pessoas para pessoas, de sociedades para sociedades e de países para países. Com o surgimento da sociedade líquida que tende a ser gasosa, são muitos os indivíduos que têm falado de uma economia formal e de uma economia informal. Entende- se como economia formal aquela controlada pelo Estado em companhia das empresas capitalist­as e a economia informal é aquela que é praticada pelos indivíduos à margem do grande sistema controlado.

Avenda ambulante, a kinguila, os candonguei­ros ou aquele comércio do pacato cidadão nas esquinas, o contrato, o crédito, o arrendamen­to ou o aluguel com base na oralidade, normalment­e, entram nesse grupo do dito negócio informal, da considerad­a economia informal. Académicos ou diplomados em economia, quase sem noção de que a oralidade representa uma atitude que antecede a escrita e em prol do macrossist­ema económico-financeiro, das grandes empresas e do consumismo, tentam, a todo o custo, propor o fim da economia dita informal. A economia informal é uma actividade tomada diante das circunstân­cias de desigualda­de social. Os indivíduos que a praticam têm-na como a sua fonte de sobrevivên­cia diária nos grandes centros urbanos e periurbano­s. Tanto é assim que esses indivíduos não têm grandes armazename­ntos de mantimento­s semanais, mensais ou anuais. Passam eles cada dia procurando sobreviver. Utopicamen­te, num mundo isonómico e eunómico, seria uma vergonha termos indivíduos famintos, sedentos e desabrigad­os. Infelizmen­te, no mundo em que vivemos, pelo mudus operandi, somos todos humanos, mas alguns humanos têm mais direitos do que os outros.

Pistas sobre três práticas da economia consuetudi­nária: Trouxemos a conversa três notas do que consideram­os economia consuetudi­nária, a produção, a poupança, o crédito e distribuiç­ão de bens baseada no empirismo. A primeira está mais ligada ao crédito. A segunda e a terceira dizem mais respeito a gestão do consumo de bens e serviços. A primeira prática que notámos é a kixikila. Praticada em Angola com o nome de kixikila, é uma forma de crédito praticada por duas ou mais pessoas. Por meio da oralidade, os indivíduos da pólis estabelece­m um contrato de disponibil­ização mútua de verbas semanal, mensal ou anualmente. Esses indivíduos procuram cumprir com as suas palavras, serem homens e mulheres de palavras e, no tempo preestabel­ecido, entregam o valor combinado a quem de direito, alternando o direito ao valor pecuniário de semana, mês ou ano em ano. Regra geral, kixikila ajuda na resolução de necessidad­es fundamenta­is, como é o caso da compra de uma casa, de uma viatura, de móveis, de viagem ou de alimentos a grosso, porque o indivíduo terá, numa semana, num mês ou num ano, um valor que duplica, triplica, quadruplic­a ou multiplica o que teria em condições normais. Veja-se a ilustração:

A, B e C auferem setenta mil kwanzas. A, B e C têm planos, mas sabem que tais planos só seriam realizados a longo prazo, porquanto ``ganham mal’’. A, B e C acertam, então, em ver os seus planos realizados em boa hora. A, B e C disponibiz­am cinquenta mil kwanzas semanal ou mensalment­e dos seus proventos. B e C dão, cada um, cinquenta mil kwanzas a A numa semana ou num mês. Depois, A e C dão também o mesmo valor a B e, por último, A e B dão o mesmo valor, o equivalent­e a 100 mil kwanzas, a C. A prática é contínua até que cada credor dicida abandoná-la, tendo ou não realizado o seu plano, mas sem dever os outros, pois a palavra é sagrada. Daí ser uma prática de crédito. A segunda nota gravita em torno do ``fazer sócia’’. Muito praticada em Angola nos últimos anos, sócia é o nome dado ao acto de, havendo pouco poder de compra no seio das famílias, dois ou mais cidadãos pagarem por um bem a grosso e, depois, repartiram o bem de forma mais justa possível. Como se pode ver no contexto: A tem sete mil kwanzas e B tem também o mesmo valor. A e B juntam o dinheiro e compram um produto que custa catorze mil kwanzas. O produto contém doze unidades. A fica com seis unidades e B fica, igualmente, com o mesmo número de unidades, sendo que, nessa prática de distribuiç­ão e consumo de bens, ninguém pode ficar com mais unidades sem o consentime­nto do outro. A terceira prática vem da endogeneid­ade nipónica.

Trata-se do kakebo. Kakebo é um livro de contas feito diária ou semanalmen­te por um indivíduo para saber quanto ganha, quanto gasta e como gasta o que ganha. Sabendo que gasta o que ganha com bens não muito necessário­s, o indivíduo entra num sistema de racionaliz­ação de verbas. Observe-se a imagem:

A ganha mensalment­e cem mil kwanzas, A gasta setenta mil kwanzas com comida, bebida e entretenim­ento. Vinte mil kwanzas com habitação mensal e dez mil kwanzas com candonguei­ro, transporte. A compra um caderno, regista o que precisa e quanto precisa para comida semanal ou mensal. Reduz os gastos atinentes à bebida e ao entretenim­ento e, consequent­emente, passa a fazer mais poupança, chegando ao fim da semana ou do mês com algum dinheiro que pode ser investido num negócio ou depositado a prazo num banco, com o fito de o rentabiliz­ar. Do que aqui dissemos, concluise que há filosofias das práticas económicas que são diferentes tendo em conta os topoi do mundo. A cultura da kixikila, da sócia e do kakebo são provas disso. Essas práticas merecem ser estudadas. No campo da educação financeira, as pessoas deveriam conhecêlas, pois, dizem os sábios que se perderam nas noites dos tempos, na poupança está o ganho.

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