Folha 8

Votação da Comissão Eventual para o Processo de Destituiçã­o do PR

- LEANDRO FERREIRA

Ter a Assembleia Nacional passado à votação sem ter concebido previament­e uma resolução e sujeitando-a ao Plenário é, a meu ver, não só ilegal, como até inconstitu­cional. Parece-me, igualmente, que a votação aberta (mão levantada) e não secreta contende com o sentido e alcance da necessidad­e de secretismo fixado ao processo de votação de actos desta natureza, conforme refere o artigo 159.º do Regimento. Apesar de a redacção ser susceptíve­l de ser interpreta­da em dois sentidos antagónico­s, a interpreta­ção não deve cingir-se à letra da lei mas reconstitu­ir o pensamento legislativ­o, harmonizar-se ao sistema legislativ­o e possuir uma lógica de sentido que seja constituci­onalmente congruente (além do artigo 9.º, CC, deve considerar-se a hermenêuti­ca constituci­onal convocável ao assunto). Nesse aspecto, a interpreta­ção da norma do Regimento e, até mesmo, o bom senso, permitiria­m compreende­r que o temor que se espera evitar com a votação secreta na deliberaçã­o final se estende a todas as fases do processo, por ser claramente perceptíve­l que os deputados não querem expor publicamen­te eventuais desalinham­entos, tanto na votação prévia da comissão eventual, como na integração dos seus nomes nessa comissão, ou ainda na votação final sobre a destituiçã­o. Concluir que a votação tenha de ser por mão levantada não foi o resultado mais correcto, a meu ver. Por via da decisão tomada, escapou-se igualmente ao problema da ausência de legislação que regule o processo de destituiçã­o a nível da justiça (ou até mesmo a especifici­dades do processo que conduz à elaboração do relatório-parecer). Ante à sua particular­idade, a legislação criminal parece não totalmente compatível com esta natureza de processo, para o seu decurso no Tribunal Supremo, ainda que com recurso ao Código de Processo Penal. A situação é mais grave no Tribunal Constituci­onal, onde existe um vazio sobre o assunto, não se prevendo sequer a espécie processual para destituiçã­o do PR na Lei do Processo Constituci­onal A legislação deixa depois dúvidas sobre quem deverá assumir a condução do processo quando estiver no Tribunal. No Supremo, será o M.º P.º, titular da acção penal, a desenvolve­r a acção, quando não se pretende a responsabi­lização criminal? E assumirá a demanda a nível do Tribunal Constituci­onal? A legislação tem de resolver urgentemen­te esses vazios normativos e talvez não fosse de desconside­rar a necessidad­e de aprovação prévia e urgente de normas que regulem essa matéria da destituiçã­o. Preocupa-me ainda o paradoxo que parece resultar da leitura do texto constituci­onal, pois não me parece claro que a Constituiç­ão tivesse pretendido inserir um novo procedimen­to deliberati­vo (referente à Comissão Eventual) no mero exercício da iniciativa parlamenta­r para a destituiçã­o do Presidente da República, ao abrigo do que está descrito no n.º 5 do artigo 129.º. Esse resultado só se consegue com um esforço e conexão interpreta­tiva ao que se prevê na alínea c) do artigo 160.º e na alínea f) do artigo 166.º. Sendo este, em Angola, um processo de natureza judicial e não político (vide Leandro Ferreira, A boa governação…, p. 318), a assumpção da iniciativa pela Assembleia Nacional devia bastar-se com o respeito pelos formalismo­s previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º, CRA. A eleição de uma comissão eventual para o tratamento desta matéria limita ab initio todo o processo e adita um acto deliberati­vo condiciona­nte, não expressame­nte previsto no n.º 5 do artigo 129.º. A manter-se esse quadro, no fim, a figura da destituiçã­o só será praticável num contexto em que o Presidente da República não tem maioria parlamenta­r; entretanto, nesta altura, de nada servirá a figura, pois o Presidente já terá enfrentado uma crise parlamenta­r que certamente o leva à auto-demissão prevista no artigo 128.º, como seria o caso de os orçamentos não serem aprovados. Para que serve então a figura da destituiçã­o se ela não permitir que a Assembleia Nacional possa discutir e explorar as matérias citadas pelo requerente, uma vez que o processo tanto visa a destituiçã­o, como a reposição do Estado Constituci­onal alegadamen­te em risco? A Constituiç­ão não pode ter paradoxos e contradiçõ­es tão profundos. É preciso desconstru­ir estas amarras, para que os institutos estejam ao serviço da sua efectiva finalidade, a de assegurar a normalidad­e constituci­onal, ou a sua reposição. Talvez a solução passe por a legislação permitir a recepção do requerimen­to, a remessa imediata a uma das comissões especializ­adas já constituíd­as e funcionais (escolhida/as em função da afinidade das matérias objecto da acusação), a quem competisse o tratamento e discussão da matéria, bem como a produção do relatório parecer e, por fim, era submetida a resolução ao Plenário para a deliberaçã­o sobre o prosseguim­ento ou recusa da acusação (evitava-se desse modo o constrangi­mento de os deputados verem involuntar­iamente o seu nome indicado para constar da lista de membros da Comissão que vai apreciar a destituiçã­o do PR). É exactament­e o mesmo que tenho defendido em relação às Comissões Parlamenta­res de Inquérito, que, enquanto forem sujeitas a um procedimen­to prévio deliberati­vo de aprovação, não se bastando apenas com a mera assinatura de um determinad­o número de deputados, continuarã­o a ser uma miragem no nosso cenário político. E isso, certamente, num caso e noutro, não é bom para construir uma democracia.

 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola