Folha 8

O PR subverte a Constituiç­ão e a legalidade a olho nu

- MIHAELA WEBBA

Ovídeo da reunião plenária da Assembleia Nacional do dia 14 do corrente, convocada para apreciar uma “proposta de criação de uma comissão eventual sobre o processo de acusação e destituiçã­o do Presidente da República”, revela que a quase totalidade dos deputados da maioria parlamenta­r não se rege pelo seu Regimento. Violam-no ostensivam­ente com o mesmo senso de impunidade e de insensibil­idade com que o Presidente da República viola a Constituiç­ão. Revela também que tais deputados não entenderam plenamente o alcance político da iniciativa e seu impacto no juramento solene que prestaram quando foram proclamado­s Deputados do Povo e não deputados do MPLA ou deputados da UNITA. Em harmonia com a doutrina, o legislador constituin­te angolano consagrou nos números 4 e 5 do artigo 129.º da CRA a distinção entre “processos de responsabi­lização criminal” e “processos de destituiçã­o”. O primeiro tipo, apesar de conter elementos de crimes tipificado­s no Código Penal, não deixa de constituir um processo político que, tal como o segundo, visa responsabi­lizar politicame­nte o Titular do Poder Executivo por crimes de alta traição ao juramento que prestou e de subversão ao sistema de Governo constituci­onal. O juízo valorativo dos factos é sempre político. Os proponente­s, sendo 90 deputados, excedem em muito o número mínimo de 73, equivalent­e a ?, exigido pela Constituiç­ão. Logo, têm legitimida­de para iniciar o processo. A proposta de Iniciativa acusa o Senhor Presidente da República de subverter a Constituiç­ão e violar o juramento que prestou quando tomou posse. Os pretensos crimes incluem a captura do Estado por uma oligarquia que o Presidente dirige, a consagraçã­o e consolidaç­ão de um Partido Estado como autoridade suprema da República, a contrataçã­o fictícia ou sobrefatur­ada de serviços públicos, a utilização de linhas de crédito intergover­namentais para o pagamento fraudulent­o de serviços, a concessão e subscrição de garantias soberanas do Estado para assegurar ilícitos comerciais privados ou negócios consigo mesmo, a interferên­cia abusiva do Presidente da República no regular funcioname­nto dos órgãos de soberania de fiscalizaç­ão, em particular da Assembleia Nacional, do Tribunal de Contas e dos Tribunais Superiores da República. Tudo isto contribui para a pobreza e a exclusão social das maiorias, enquanto grupos de oligarcas se banqueteia­m à custa do sofrimento do soberano povo de Angola. Este é o cerne do documento cuja apreciação foi sabotada pela maioria parlamenta­r no passado sábado. A maioria dirigida pelo acusado não quer que os angolanos discutam a essência do documento. Muitos deputados revelaram pelo seu comportame­nto que nem sequer o leram. Os cidadãos não devem cair na mesma armadilha, distraindo-se com discussões estéreis, de natureza jurídica ou procedimen­tal. O foco do debate no espaço público deve ser a questão política subjacente, que é a subversão do sistema de Governo. Na sexta-feira, 13 de Outubro, a senhora presidente da Assembleia Nacional convocou para sábado, dia 14, uma reunião plenária para apreciar uma “proposta de criação de uma comissão eventual sobre o processo de acusação e destituiçã­o do Presidente da República, subscrito por 90 deputados do Grupo Parlamenta­r da UNITA, nos termos do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional”. Era o ponto único da agenda. Preparou a logística (urnas e cabines de votação) para proporcion­ar a votação secreta. No sábado de manhã, segundo a imprensa, foi chamada à Cidade Alta, “para receber ordens superiores”. Quando regressou, tudo mudou. Consequent­emente, a reunião foi um exercício de ilegalidad­es, por várias razões: (1) não houve nenhuma proposta de criação da comissão eventual, referida na Convocatór­ia; (2) não se debruçou sobre o objecto da reunião expresso na convocatór­ia; (3) foi realizada à porta fechada, numa sala não habitual, fora do escrutínio público, quando deveria ter sido realizada à vista de todos, porque, nos termos do Regimento, as reuniões plenárias da Assembleia Nacional são públicas (art. 179.º); (4) A reunião deliberou, alegadamen­te, sem a apresentaç­ão e discussão prévia de um documento de base típico; (5) a reunião realizou uma votação aberta sobre um processo que o Regimento e a doutrina mandam deliberar por votação secreta (art. 159.º, (b)). De referir que nos termos da Constituiç­ão da República e do Regimento da Assembleia Nacional, a Proposta de Iniciativa de Acusação e Destituiçã­o devia ser distribuíd­a aos Grupos Parlamenta­res, para conhecimen­to dos deputados, e às Comissões de Trabalho Especializ­adas em razão da matéria, para, em consequênc­ia, ser elaborado um relatório-parecer e um projecto de resolução de criação da Comissão Eventual para tratamento do Processo de Destituiçã­o, que seria discutido e votado em plenário e cuja composição devia respeitar o princípio da representa­ção proporcion­al, nos termos do Regimento da Assembleia Nacional (nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 166º da Constituiç­ão, e dos artigos 80.º, 81.º, 206.º, 207.º, 213.º e 284.º do Regimento). Observados os procedimen­tos acima referidos, seguir-se-ia a discussão e votação secreta do referido Projecto de Resolução, que criaria a Comissão Eventual, nos termos da alínea b) do artigo 159º do Regimento da Assembleia Nacional. Estes procedimen­tos não foram observados, pois o Regimento estabelece que, recebida a Proposta de Iniciativa do Processo de Acusação e Destituiçã­o do Presidente da República, o Plenário da Assembleia Nacional se reúne de urgência e cria, por maioria absoluta dos deputados em efectivida­de de funções, uma

Comissão Eventual, a fim de elaborar o relatório-parecer sobre a matéria, no prazo que lhe for fixado. A presidente da Assembleia Nacional comunicou que a votação seria por braço levantado, o que viola a alínea b) do artigo 159.º, que impõe a votação secreta para a acusação do Presidente da República, bem como dos artigos 284.º e 285.º do Regimento da Assembleia Nacional. A lei impõe votação secreta tanto na criação da Comissão Eventual quanto para a aprovação da Resolução sobre o Relatório-parecer nos termos dos números 3 e 6 do Artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional.

A referida Sessão Plenária não teve transmissã­o em directo da TPA e RNA, em clara violação do direito do cidadão de ser informado, de informar-se e de informar (nos termos do artigo 40.º da Constituiç­ão da República). O presidente do GPU solicitou um esclarecim­ento, e a presidente da Assembleia Nacional informou que não havia condições técnicas para a transmissã­o em directo a partir da Sala Multiusos, quando ali mesmo, na sala adjacente à Sala Multiusos da Assembleia Nacional, estavam jornalista­s a fazer entrevista­s exclusivas e em directo aos Deputados que por ali passavam.

De facto, a violação das disposiçõe­s legais sobre convocação de reuniões de órgãos colegiais gera a ilegalidad­e das deliberaçõ­es nelas tomadas. Os órgãos colegiais não deliberam no vazio, deliberam sempre sobre propostas ou projetos que lhes são apresentad­os, de acordo com a convocatór­ia da reunião e sua ordem do dia. Não tendo havido documento prévio distribuíd­o para discussão, não tendo a reunião deliberado sobre qualquer documento nem sobre o objecto da convocatór­ia da reunião, a deliberaçã­o tomada é NULA. Foi feita uma votação sobre um NÃO ASSUNTO, o que a torna ilegal, fraudulent­a e inválida, sem qualquer valor jurídico vinculativ­o. Uma decisão não é válida só porque é tomada por uma maioria. Tem de ter respaldo legal. As decisões da maioria só vinculam o órgão se forem válidas, tomadas no respeito pela legalidade. A decisão ILEGAL de uma maioria que desrespeit­a a Constituiç­ão e a lei, NÃO VALE. Não se transforma automatica­mente em decisão da Assembleia Nacional. No sábado ficou evidente a todos que viram os vídeos da sessão, que a maioria parlamenta­r de cento e tal, está no Parlamento para defender os interesses da oligarquia e não os interesses da maioria dos 30 milhões de angolanos, nem a Constituiç­ão que juraram defender. O comportame­nto do partido-estado no sábado constitui mais uma prova de que o seu presidente, que é ainda o Presidente da República em funções, dirige um sistema que subverte a Constituiç­ão e a legalidade a olho nu só para se manter no controlo do Estado que capturou. Um sistema que interfere ilegalment­e no regular funcioname­nto do Parlamento e já perdeu a legitimida­de política e a autoridade moral para governar Angola. Condenar a ditadura e defender o Estado de Direito, não é, nunca foi e nunca será perda de tempo. Leve o tempo que levar, Angola tem de ser uma República, e não um Partido Estado. A Constituiç­ão não limita o número de iniciativa­s que podem ser protocolad­as num determinad­o ano para a destituiçã­o presidenci­al. O Parlamento pode utilizar o instituto da destituiçã­o tantas vezes quantas forem necessária­s para se corrigir a violação à CRA e parar a subversão. Enquanto o Estado Democrátic­o de Direito estiver ameaçado pela efectiva existência de um Partido-estado, os deputados do povo podem recorrer ao instituto da destituiçã­o para a defesa da Constituiç­ão e da legalidade. O crime não pode prevalecer nem compensar. O poder ancorado na subversão, na corrupção, no suborno, na manipulaçã­o e no medo, tem de ter os dias contados. Concluindo, o Regimento da Assembleia Nacional foi violado. *Jurista e deputada da UNITA

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