Manuel Rui em “Quitandeiras & Aviões”
Aobra de Manuel Rui escrita com o mesmo vigor literário que caracteriza os escritores da sua época e preocupação social reveste-se de misticismos, lamúrias, narrativas, ficção e estórias do mosaico cultural angolano e dos contrastes civilizacionais de gente simples, humilde, trabalhadora que perpassa longe das câmaras da fama. O contexto da sua inspiração e criatividade textual nesta nova obra, agrupa seis contos populares axiluandas com a verosímil observância do poeta ao virar da esquina. O cheiro, as cores, os pássaros, o trânsito, o lixo, as fofocas, as intrigas, as quitandeiras e os sonhos mutilados são visualizados pelo narrador como esmiúças épicas de uma cidade em transformação e transformada na sua essência de identidade.
1- Realismo e popular
Antes de se desenvolver, a análise crítica de uma obra, ressalta a importância do carácter ficcional do texto literário, o que significa que este se configura em uma representação do mundo, da sociedade. Portanto, o leitor ao folhear as páginas da
A obra literária “Quitandeiras & Aviões” do escritor angolano Manuel Rui contém oitenta e sete páginas e seis estórias, nomeadamente “Cem metros”, “O terreno”, “O preço é bom, pai!”, “O vietcamba”, “sábado” e “os pés e os sapatos”. Numa edição sob égide da União da União dos Escritores Angolanos inserida na colecção “Sete Egos”, o livro é um misto de humor, sarcasmo e epigrama.
obra de Manuel Rui deve ter consciência do livre arbitrário e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade. Em outras palavras que o carácter ficcional da obra não precisa necessariamente ter o compromisso de representar o mundo de modo fiel, mesmo porque a representação de valores é a concepção de quem assista, observa e questiona o quotidiano de valores preservados ou alterados em determinada época. É justamente neste ponto que o realismo e popular se enquadram na produção de Manuel Rui. Para o autor, o quotidiano da sua gente, as falas, as dificuldades, as mudanças civilizacionais são mais urgentes do que o crescimento de betão. A partir da visão do escritor – e dos valores que o formam enquanto indivíduo adverte os actores sociais (entidades públicas e sociedade civil) para uma análise crítica unilateral que se fundamenta apenas no levantamento e na transposição dos factores sociais da obra e da realidade.
Na primeira estória do livro observa-se um relato interessante da preservação da memória “tinham mudado o nome para Marien Ngouabi mas toda a gente continuava a chamar António Barroso, talvez por ser mais simples e nome da língua que falavam ou conheciam, era uma confluência de quitandeiras, zungueiras, miúdos de vender electrodomesticos, senhoras kinguilas de cambiar kwanzas nos dólares nos kwanzas, mas a alegria e cor da avenida era mesmo o pregão cantado das peixeiras, a chamada das senhoras “vem aqui! Olha só fruta, maracujá, fruta pinha, loengos, padrinho! Pai, poeta trouxe os teus coentros” Gente da quitanda com a variedade de roupas e penteados e o colorido apetitoso dos anananes…..” lê na estória CEM METROS na página 9 do livro. Para o autor, as pessoas axiluandas têm um modo próprio de expressar a sua existência, de se relacionarem, de viver os problemas, de encararem a vida e até as corridas dos fiscais, mas sempre com a mesma genica e liberdade do homem de rua e das quitandeiras sobreviventes.
2- Ortografia e português de Angola
A relação que Manuel Rui estabelece com a língua portuguesa inquieta muitos linguistas e professores. Mas para o autor, escrever não é apenas a soma das palavras ou das regras de sintaxe. Nos textos de Manuel Rui, desde os mais antigos “Regresso Adiado” (1973) aos mais recentes “Kalunga” (2020), a escrita do autor é seguida pelas expressões do seu povo, sem acentos ou regras gramaticais e palavras esdrúxulas, porque na verdade as pessoas em Angola, utilizam o calão, transportam para língua palavras mixadas e neologismos. A língua precisa dos seus sinais para se constituir como língua. Com esta posição, Manuel Rui ganha muitos admiradores mas também muitos adversários linguísticos. A língua tem uma plasticidade enorme, uma plasticidade que a maioria das coisas não tem.
E Manuel Rui usa como poucos na nossa literatura a sua plasticidade e gozação. A gozação e imaginário que transportou aos livros. Escrever sem pontuação não é um mero exercício retórico, mas um exercício de liberdade. É relevante frisar que o mais saliente para alguns literatos é ser angolano, escrever como angolano e ter um estilo literário próprio em detrimento da universalidade literária de sonhos e realidades. Passamos para o trecho da obra “Se calhar nem aparece. Anda com muito ar. Pensa que não lhe reconhecem o valor que ela acha que tem. Qual valor qual trampa! Nem julguem que eu vou dar uma de dona de casa, reverente. Nem pó. Isso era antigamente, hoje com essas empresas de eventos é outra coisa. Está tudo pronto e quem quiser que se sirva. É sem cerimónias...….. Não desaprendam o que o colono deixou, isto é, não tomem chá com o garfo, não caguem na chávena nem limpem o cu ao guardanapo,” lê-se na estória “Sábado”, página 66.