GERMANO ALMEIDA: O ESCRITOR DA RUPTURA
Cabo Verde é o país de África mais ocidental e o que mais precoce e pacificamente aceitou e assimilou a influência estrangeira. Na obra de Germano Almeida, esse entrecruzar Europa-áfrica, ex-colonizador/ excolonizado, é manifesto no discurso, com múltiplas referências e marcas no quotidiano. E à popularidade do escritor em Portugal, não écertamente alheia essa capacidade em ver dos dois lados. O escritor faz uma abordagem literária original, singular e muito fiel ao mundo real. Para alcançar esse objectivo, recorre a uma temática assente no quotidiano e na questão de género, revisita e reutiliza temas e personagens num diálogo inter-obras, e ainda lança mão do tom coloquial e da ficção inspirada em factos reais.
Germano Almeida, autor de incontestável valor na literatura contemporânea de Cabo Verde, conquistou, em pouco tempo, uma posição de visibilidade além- fronteiras. No caso português, a atestar esse reconhecimento, temos a sua inclusão nas sugestões de leitura do Plano Nacional de Leitura: O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, A Ilha Fantástica e A Morte do Ouvidor.
Também é de realçar o interesse que despertou noutras áreas artísticas com adaptações ao cinema e ao teatro. Destaque-se ainda o bom acolhimento que tem granjeado junto da crítica especializada. A propósito de O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, Maria Manuela Guerreiro vem afirmar que marca um “ponto de viragem na literatura cabo-verdiana” (Guerreiro, 1996: 1), pois abandona as temáticas recorrentes da seca, da fome, do colonialismo, para abraçar novos interesses. Esta mesma ideia de novidade é assinalada, em 1995, por Pires Laranjeira. Este estudioso divide as literaturas cabo- verdianas em seis períodos e situa Germano Almeida no 6º período: de 1983 à actualidade, começando por uma fase de contestação, comum aos novos países, para gradualmente se vir afirmando como verdadeiro tempo de Consolidação do sistema e da instituição literária (…) liderada por Germano de Almeida e Leão Lopes, não só pela novidade e arrojo do conteúdo (…), mastambém pelo aspecto e qualidade gráfica, muito acima da média nos PALOP.
(Laranjeira, 2005: 184) Para este estudioso das literaturas africanas, Germano Almeida é um autor revelação, que rompe com a herança dos “claridosos”. Tal como já sugerido, estes autores ocupavam-se de temas como a fome, a seca, a insatisfação, o incómodo, a emigração e o sentimento de insularidade. Além desta temática obsessiva, o espaço ficcional fechava-se e circunscrevia-se ao arquipélago e a atitude da literatura era assumidamente “engagée”. Este movimento tinha por veículo a revista Claridade, que reclamava a valorização das raízes mais profundas do povo, nomeadamente através da utilização da língua crioula, a qual era objeto de repressão durante os anos do colonialismo. A estratégia de Germano Almeida propõe o humor, a paródia, o ridículo. E usou precisamente a paródia para abordar um tema tradicionalmente caboverdiano - a seca, no seu primeiro romance O Testamento do Sr. Napunocemo da Silva Araújo. Aí, um homem enriquece à custa de guarda-chuvas encomendados por engano. As fortes chuvas que tinham levado uma parte da população a tudo perder acabaram por enriquecê-lo. Assim, a sua sorte, em detrimento da miséria dos outros, levá-lo-ia a dedicar-se a ajudar os outros. Paródia, humor cáustico, utilização de personagens femininas, vivência da diáspora com cabo-verdianos regressados, são outros traços que marcam essa viragem. Todavia, não se pense que o autor omite as dificuldades denunciadas pela literatura mais tradicional. A diferença está no facto de não o fazer por oposição ao ex-colonizador, mas por ser uma realidade num país recentemente independente, onde a principal preocupação continua a ser a alimentação. E são inúmeras as referências. Por exemplo, Saraiva, da novela “In memoriam”, garante que tanto faz que sejam os portugueses ou os cabo-verdianos a governar Cabo Verde, desde que não lhe falte com que levar “a panela ao lume” (Almeida, 1998a: 28). Na novela “As mulheres de João Nuno”, os excessos das empregadas de João Nuno também denunciam essa carência: a Dodoca abusa no uso da cebola; há a “velha-que-gastavaágua-de-mais”; a Maria desperdiça a manteiga e a Ana bebe o vinho branco do patrão. Por seu lado, a mulher do Artista, da novela “Agravos de um artista”, também entende que o marido “só tem serventia para gastar comida” (ibid.: 187). Na obra O Meu Poeta, Vasco critica um povo que se resigna sem “pensar com a sua cabeça”, um povo que “em geral ainda não passou da idade da barriga” (Almeida, 1999: 194). Até porque, para uma grande parte da população, o que continua primordial é “garantir a cachupa, alguma roupa, uns copos e pôr filhos na escola” (ibid.: 256).
Em toda a obra de Germano Almeida existe uma ideia de unidade e coerência, fruto de lugares e personagens que atravessam as suas narrativas, o que confere uma maior plausibilidade às suas estórias. A repetição de personagens e até de algumas estórias permite “religar o presente ao passado” (Gândara, 2008: 161). Quando o leitor “desprevenido” julga que a estória terminou, descobre que, afinal, havia uma releitura possível no livro seguinte. Acaba por haver uma espécie de cumplicidade entre o escritor e os seus leitores mais assíduos ao descobrirem que as personagens “circulam” de