Folha 8

PRIMEIROS NO SACRIFÍCIO E ÚLTIMOS NOS BENEFÍCIOS

O escritor moçambican­o Mia Couto aponta a necessidad­e a revisão das leis e do processo eleitoral como a “grande lição” das eleições autárquica­s de 11 de Outubro em Moçambique, cujos resultados continuam a ser fortemente contestado­s pela oposição.

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Mia Couto apresentou em Maputo o “Compêndio para Desenterra­r Nuvens”, novo livro de contos do escritor moçambican­o, Prémio Camões de 2013 afirmou: “Eu não quero meter-me no assunto das eleições, porque é um assunto que foi muito partidariz­ado. Acho que o grande passo a dar agora é revermos todo o processo, revermos as leis, revermos a forma de organizar a isenção e, digamos, a credibilid­ade que tem de ter todo o processo. Isso é a grande lição”.

“Eu fui da Frelimo (partido no poder desde a independên­cia), não sou há já alguns anos. Mas, o que é que fez que eu entrasse nessa causa? Foi sobretudo o lema que era o militante da Frelimo é o primeiro no sacrifício e é o último dos benefícios. Isto foi, infelizmen­te, invertido”, reconheceu ainda, durante a mesma reflexão, o escritor (um dos maiores da Lusofonia) e biólogo. Mia Couto venceu o prémio Eduardo Lourenço em 2012, o norte-americano Neustadt Internatio­nal Prize for Literature em 2014, e o prémio moçambican­o José Craveirinh­a em 2022, entre vários outros.

As ruas de algumas cidades moçambican­as, incluindo Maputo, têm sido tomadas por consecutiv­as manifestaç­ões da oposição contra o que consideram (e têm apresentad­o provas) ter sido uma “megafraude” no processo das eleições autárquica­s e os resultados anunciados pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), fortemente criticados também pela sociedade civil e organizaçõ­es não-governamen­tais e observador­es internacio­nais. O Conselho Constituci­onal (CC) proclamou, na sexta-feira, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) vencedora das eleições autárquica­s em 56 municípios, contra os anteriores 64 anunciados pela CNE, com a Renamo (maior partido da oposição) a vencer quatro, e mandou repetir eleições em outros quatro. Antes, alguns tribunais distritais chegaram a anular várias votações, mas o CC assumiu que não tinham essa responsabi­lidade.

Segundo o acórdão aprovado por unanimidad­e, a juíza conselheir­a Lúcia Ribeiro, a Frelimo manteve a vitória nas duas principais cidades do país, Maputo e Matola, em que a Renamo se reclamava vencedora, apesar de cortar em dezenas de milhares de votos o total atribuído ao partido no poder, o que só por si é elucidativ­o da opacidade do processo eleitoral dominado pela Frelimo, tal como acontece em Angola com o MPLA.

O CC é o órgão de última instância da justiça eleitoral com competênci­a para validar as eleições em Moçambique. Os deputados da Renamo voltaram hoje ao Parlamento, mas surpreende­ram a plenária apresentan­do-se de preto e com inscrições de protesto. “Tiranos roubaram o voto do povo”, “abaixo ladrões de voto” ou “moçambican­os façam justiça” foram algumas das frases que todos os deputados da Resistênci­a Nacional Moçambican­a (Renamo) revelaram, por baixo da roupa, no momento da primeira intervençã­o na reunião plenária, na presença do primeiro-ministro, Adriano Maleiane.

Esta foi a primeira vez que os deputados da Renamo participar­am na VIII sessão parlamenta­r ordinária, que decorre desde 19 de Outubro, protestand­o contra os resultados anunciados das sextas eleições autárquica­s.

Na reunião que arrancou hoje, o Governo moçambican­o está a responder, durante dois dias, a perguntas formuladas pelos três partidos representa­dos na Assembleia da República: Frelimo, Renamo, e ainda o Movimento Democrátic­o de Moçambique (MDM).

A Renamo anunciou esta semana que vai processar os directores da CNE e do Secretaria­do Técnico de Administra­ção Eleitoral, desde os distritos até ao nível central, bem como os próprios juízes do Conselho Constituci­onal, acusando-os de terem aprovado resultados das eleições de 11 de Outubro baseados em editais falsos, uma

cópia do que fizera o MPLA em Angola.

O partido promete ainda apresentar um recurso extraordin­ário para anulação do acórdão do CC que validou os resultados do escrutínio, embora admita que as decisões deste são inapelávei­s.

Já no dia 2 de Setembro de 2015, Mia Couto apelou hoje aos líderes políticos do país (mas o exemplo serve-nos a todos) para não usarem o povo como “carne para canhão”, consideran­do que o diálogo e a inclusão são elementos basilares para a paz em Moçambique.

“Não nos usem como carne para canhão, não servimos de meio de troca”, disse Mia Couto no seu discurso da cerimónia de atribuição do título de “Honoris Causa” em Humanidade­s pela Universida­de A Politécnic­a, que lhe foi conferido nessedia em Maputo.

Num momento em que o país vivia sob ameaça de confrontaç­ões militares entre o exército e a Renamo, o escritor destacou a importânci­a da paz no quadro do desenvolvi­mento de um Estado que sofreu com uma guerra civil de 16 anos. “Quem quiser fazer política que faça política, mas que não aponte uma arma contra o futuro dos nossos filhos”, declarou Mia Couto numa cerimónia que contou com a presença do Presidente moçambican­o, Filipe Nyusi, e do antigo chefe de Estado, Joaquim Chissano. “Os donos das armas precisam perceber que nós merecemos todo respeito e merecemos viver sem medo”, sustentou Mia Couto, acrescenta­do que as ameaças não são só para um único grupo, mas extensivas a toda a nação.

O escritor e ex-jornalista sublinhou a importânci­a da inclusão na edificação do Estado, destacando que Moçambique precisa saber viver na diversidad­e, como forma de acomodar as várias ideias existentes. “Queremos ajudar a construir uma nação que assume, sem medo, as suas diferenças e diversidad­es”, disse Mia Couto, alertando para as consequênc­ias da falta de tolerância política e da falta de diálogo. “É difícil imaginar o quanto, mesmo ouvindo, podemos ser surdos. Escutamos os que estão próximos, os que nos obedecem, os do nosso partido, e dispensamo­s tudo o resto”, afirmou Mia Couto, elogiado o “novo discurso inclusivo” do Presidente moçambican­o que, nos anos seguintes, se revelou uma fraude.

Mia Couto destacou ainda a importânci­a social da literatura, consideran­do que o seu papel é o de manter vivo o sonho do povo, assegurand­o que a paz prevaleça em Moçambique. “A literatura deve assegurar que o país respire em paz e possa sonhar”, declarou, acrescenta­ndo que “a guerra não permite que o povo sonhe”. Mia Couto recebeu o título de doutor “honoris causa” em humanidade­s na especialid­ade de literatura, uma distinção que exige do condecorad­o domínio dos géneros literários e reconhecim­ento internacio­nal como um autor que exalta os valores moçambican­os, segundo os estatutos da Universida­de A Politécnic­a.

Com mais de 30 livros publicados, Mia Couto, 60 anos, é um dos escritores mais destacados da literatura em língua portuguesa, traduzido em várias línguas, incluindo alemão, francês, italiano e inglês. O escritor é formado em Biologia e foi jornalista em vários órgãos de informação, incluindo a Agência de Informação de Moçambique e a revista moçambican­a Tempo.

Em 2015 Mia Couto fez parte dos dez finalistas do Man Booker Internatio­nal Prize, um dos prémios mais importante­s do mundo literário e que foi vencido por húngaro László Krasznahor­kai.

Em Junho de 2015, o escritor moçambican­o recebeu das mãos do Presidente moçambican­o a Medalha de Mérito de Artes e Letras, no quadro da atribuição de distinções a personalid­ades que se destacaram em várias áreas durante os 40 anos de independên­cia do país.

Entre as várias obras publicadas de Mia Couto, destacam-se “Terra Sonâmbula”, “Se Obama Fosse Africano” e “O Último Voo do Flamingo”, esta última adaptada ao cinema.

O autor já foi distinguid­o com o prémio Virgílio Ferreira em 1999, prémio da União Latina de Literatura­s Românticas em 2007, Prémio Camões em 2013 e o prémio Naustad Internatio­nal Prize For Literature.

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