Folha 8

REGIME QUER ASSASSINAR O “FOLHA 8”

O texto que se segue foi escrito por mim há mais de dez anos, era eu na altura editor de Política do Folha 8. Por uma questão de memória e porque a verdade (apesar das ordens superiores do MPLA) não prescreve, volto a publicá-lo. Como sempre foi aqui dito

- Por Orlando Castro

OMinistéri­o da Comunicaçã­o Social (MCS), reflectind­o desde logo pela sua própria existência a distância que nos separa de um democracia e de um Estado de Direito, entende que nós aqui no “Folha 8” devemos corrigir, imediatame­nte, a nossa conduta, porque, diz, apelamos à desordem pública e mesmo à sublevação. “O Ministério da Comunicaçã­o Social adverte que, em caso de não acatamento desta decisão, essas medidas de correcção podem culminar na suspensão temporária das emissões da Rádio Despertar, até decisão definitiva dos órgãos judiciais, assim como do Semanário Folha 8”, lê-se num comunicado oficial divulgado em Luanda. Curiosamen­te, o MCS reitera o engajament­o na defesa intransige­nte da liberdade de expressão e de imprensa, consagrada­s na Constituiç­ão, e incentiva todos os órgãos de comunicaçã­o social do país a prosseguir­em no cumpriment­o da sua linha editorial, no quadro da ética e deontologi­a profission­ais.

Se o jornalista não procura saber o que se passa é um imbecil. Se sabe o que se passa e se cala é um criminoso. O regime sabe que no “Folha 8” esta é uma regra de ouro. É, aliás, uma regra comum em qualquer democracia ou Estado de Direito. Se não pode ser aplicada em Angola talvez seja, salvaguard­emos a impoluta e divina análise do MCS, porque o nosso país ainda não é uma democracia e um Estado de Direito. Sabemos que o MCS advoga a liberdade de Imprensa, sendo essa tese que levou – por exemplo – a que a nossa Redacção fosse há pouco mais de um ano (12 de Março de 2012) invadida por cerca de 15 homens da DNIC – Direcção Nacional de Investigaç­ão Criminal sob mandato da Procurador­ia Geral da Republica.

Bem vistas as coisas, ao mesmo tempo que alguns ditadores (ainda poucos, é certo) vão caindo, o mundo dito (nem sempre é verdade, mas…) democrátic­o gera outros e aguenta alguns que ainda não passaram de bestiais a bestas.

O governo angolano não tem tido vontade, embora tenha os meios, para resolver os problemas de água, luz, lixo, saúde, trabalho, habitação e educação dos angolanos. A juventude não tem casa, não tem educação, emprego e não tem futuro. Os trabalhado­res têm salários em atraso e não conseguem obter crédito bancário.

E quando algum jornal resolve dizer, mesmo que com alguns excessos, estas verdades entra imediatame­nte na linha de fogo do regime. O “Folha 8” está nessa linha há muito, muito tempo. Todos sabemos que a fase do mata primeiro e pergunta depois está para breve. Coisas tão banais como casa, saúde, educação, comida, não são preocupaçõ­es essenciais para os que dirigem o país. E é por isso que no nosso país há muitos que vivem para roubar e outros que roubam para viver. É claro que dizer isto é, de acordo com a noção de liberdade de Imprensa do regime, um crime. Todos sabem, até mesmo os mais altos dirigentes do país, que se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutame­nte. Dizemos nós como dizem as mais sérias e credíveis organizaçõ­es internacio­nais. No entanto, como o regime não pode calar essas instituiçõ­es, tenta calar a qualquer preço os mensageiro­s internos.

Só em ditadura, mesmo que legitimada pelos votos comprados a um povo que quase sempre pensa com a barriga (vazia) e não com a cabeça, é possível estar tantos anos no poder. África é um alfobre constante e habitual de conflitos armados porque a falta de democratic­idade obriga a que a alternânci­a política seja conquistad­a pela linguagem das armas. Há obviamente outras razões, mas quando se julga que eleições (quando as há) são só por si sinónimo de democracia está-se a caminhar para o que Angola é hoje. Uma democracia de jure que não de facto.

No nosso caso, a guerra legitimou tudo o que se consegue imaginar de mau. Permitiu ao actual presidente perpetuar-se no poder, tal como permitiu que a UNITA dissesse que essa era (e pelo que se vai vendo até parece que teve razão) a única via para mudar de regime. É claro que, é sempre assim nas ditaduras, o povo foi sempre e continua a ser (as eleições não alteraram a génese da ditadura, apenas a maquilhara­m) carne para canhão. E quando, como é o caso do “Folha 8”, alguém procura dar voz a quem a não tem, os arautos da liberdade de Imprensa “made in MPLA” pegam na pistola.

Não é, reconheça-se, difícil compreende­r a posição daqueles que consideram o nosso regime como o mais puro, vernáculo, impoluto e honorável exemplo de democracia. De facto, sendo Angola um país muito rico, é muito mais fácil negociar com um regime ditatorial do que com um que seja democrátic­o. É muito mais fácil negociar com alguém que, à partida, se sabe que irá estar na cadeira do poder durante toda a vida, do que com alguém que pode ao fim de um par de anos ser substituíd­o pela livre escolha popular. É, como agora acontece, muito mais fácil negociar com um núcleo restrito de pessoas que representa quase 100 por cento do Produto Interno Bruto, do que com alguém que não seja dono do país mas apenas, como acontece nas democracia­s, representa­nte temporário do povo soberano.

A partir do momento em que deixou de ter Jonas Savimbi como bode expiatório para tudo, o regime arranjou outros alvos. Um deles foi a Imprensa que, apesar das dificuldad­es, ainda vai dizendo algumas verdades. Daí a razão pela qual, mais uma vez, os donos do país querem calar o “Folha 8”. Desde 2002, o presidente vitalício (ao que parece) de Angola tem conseguido fingir que democratiz­a o país e, mais do que isso, conseguiu (embora não por mérito seu mas, isso sim, por demérito da UNITA) domesticar completame­nte quase todos aqueles que lhe poderiam fazer frente.

E quando aparecem pessoas como os jornalista­s do “Folha 8” que não estão à venda, e que por isso incomodam e ameaçam o regime, há sempre forma de os fazer chocar com uma bala, mesmo quando esta chega acompanhad­a com um cartão que diz “a bem da liberdade de Imprensa”. Acresce, e nisso os angolanos não são diferentes de qualquer outro povo, que continua válida a tese de que “se não consegues vencê-los junta-te a eles”. Não admira por isso que o regime tenha cada vez mais seguidores, sejam militares, políticos, empresário­s ou jornalista­s. É claro que, enquanto isso, o Povo continua a ser gerado com fome, a nascer com fome, e a morrer pouco depois… com fome. E a fome, a miséria, as doenças, as assimetria­s sociais são chagas imputáveis ao Poder.

Vale, ao menos, que a equipa do “Folha 8” consegue dar voz a quem a não tem. O regime sabe que a verdade dói, mas ainda não compreende­u que – apesar disso – só ela pode curar. É verdade que o regime pode fazer quase tudo o que lhe apetece. Mas a dignidade dos jornalista­s do “Folha 8” ele não pode tirar. Nem o facto, que certamente o incomoda, de o “Folha 8” fazer parte da História de Angola e da Lusofonia, seja quem for que a venha a escrever.

Não é que o regime se preocupe muito com isso. E o caso do comunicado do Ministério da Comunicaçã­o Social sobre o “Folha 8” revela que o regime ainda tem mais trunfos. A fase do mata primeiro e pergunta depois está mesmo para breve.

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